
Adriana Leite e Santos
Numa das músicas do novo cd "Recanto", de Gal Costa, Caetano Veloso diz pela voz da sua companheira musical há mais de 40 anos que "viver é um desastre que sucede a alguns". O cd foi todo ele composto por Caetano, e já foi listado como um dos 10 melhores de 2011 em todo o Brasil. Trata-se de um álbum conceitual que segue a linha dos últimos trabalhos de Caetano, intitulados "Cê" e "Zii e Zie". Em ambos, Caetano injetou novo sopro de vida musical às suas composições a partir da parceria com músicos bem mais novos que ele, como o guitarrista Pedro Sá.
No disco de Gal, o também produtor Caetano Veloso chamou músicos como o baixista Kassin, o multi-instrumentista Davi Moraes e o pianista Daniel Jobim, neto do maestro Jobim, para ajudá-lo a imprimir um som contemporâneo às suas composições enxutas e sintéticas em termos de linguagem, tanto escrita quanto musical. “Não salto, mas sou carregada por asas que a gente não tem“. “Recanto” tem ainda a participação do violoncelo de Jacques Morelembaum, e de percussão eletrônica e sintetizadores programados por diversos músicos da nova geração, dentre os quais o seu filho Zeca.
“Mulher, aos prazeres, futuro, eu me guardei”. É um grande disco. “Cara do mundo, cara de tudo, cara do que já foi, músculo nu num filme ruim, soluço”. Disco onde as letras cantam não somente a dor de existir como a dor de envelhecer e de se saber finito. “Tudo dói, tudo dói. Viver é um desastre que sucede a alguns. Os vocábulos iridescem, os hipotálamos minguam, tudo é singular. Dói. Tudo dói”.
“Cara do mundo, máscara de carvão; máscara clara, rosto de multidão; gozo em te ver tão cara a cara assim, posso meter máscara clara em mim”. Tudo no disco faz pensar que cada um poderia ser qualquer outra pessoa, ser quem quisesse: mais um fodão qualquer a tagarelar as suas proezas; um corrupto a acumular mais do que uma formiga diariamente o faz, ou do que um formigueiro inteiro; uma puta ou um cafetão, ou suas corruptelas moderninhas ‘modelo-manequim’ e ‘agente empresarial’; médico, drogado, presidente de uma firma ou de um país, um mendigo. “Nasce uma criança entre nós homens: o menino aguenta, o menino salva, o menino sou eu”.
Mas não: é preciso chamar a responsabilidade a si. Somos quem sempre quisemos ser, sabendo disso ou não. Se na vida, as leis e o convívio social nos medem e impelem às atitudes normativas, na escrita e em seus derivativos (artes em geral), tudo vale, tudo desde sempre está prestes a ser resgatado e decifrado de qualquer jeito por qualquer um que seja capaz de fazê-lo. Na escrita e nas artes, não existe o desafinado ou o proibido: até o atonal, o palavrão, o desmedido e o sangue que jorra das feridas somem e se transformam no que é, e ponto.
Somos todos nós um monte de cadernos em branco com algumas folhas rabiscadas meio a esmo, e outras em branco, em grande maioria, onde escrevemos - passado e presente - o que quisemos e o que quisermos. Tentativas de tradução de nós mesmos. “Frente às estrelas, no ancoradouro de Madre Deus, meu corpo todo desmede-se, despede-se de si, descola-se do então, do onde, longe do longe some o limite entre o chão e o não. Frente ao infindo, costas contra o planeta, já sou a seta sem direção. Instintos e sentidos extintos, mas sei-me indo”.
E o que não sabemos de nós, quase nada ou quase tudo, é o que faz de nós o neguinho que “compra 3 tvs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz: neguinho também se acha. Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si. Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho”. “Não sofro mais assim, pois está tudo onde deve estar”. Texto, enfim, de Caetano Veloso. A voz inigualável de Gal Costa. E eu digo: viver é um milagre que sucede a alguns.
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