terça-feira, 15 de março de 2011

Dormir e acordar


Adriana B. Leite e Santos


"Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda". A frase é de Carl Jung, psicanalista que foi discípulo de Sigmund Freud e que, depois de uma estreita colaboração com o pai da psicanálise, virou dissidente do movimento psicanalítico por não concordar com algumas de suas premissas mais caras. Nem por isso Jung deixou de ter grande importância para Freud e para o desenvolvimento do novo saber sobre a mente humana instituído há pouco mais de 100 anos pelo vienense.
"Quem olha para fora, sonha". Quem olha para o mundo, olhou antes para um espelho. Se viu com o olhar desse mesmo mundo. Esse olhar introduz o aprendizado da utilização de signos e símbolos produzidos em sociedade. A partir daí, o sujeito tenta codificar e decodificar as mensagens que o mundo e o inconsciente enviam, incessantemente. Codificar e decodificar mensagens incluem aprendizados prévios e expectativas futuras. Implicam, portanto, em projeções. Em sonhos. Ou, em linguagem psicanalítica, em fantasias.
Ao olhar para fora, o homem seleciona as imagens que lhe são mais caras. Ao olhar para fora do seu umbigo, o bebê humano necessariamente vê ali o olhar do outro. A exterioridade constitui a nossa subjetividade a partir do momento em que introduz um outro olhar - o olhar do outro - sobre nós mesmos. Ela introduz a intermediação cultural em nossas relações com nossa própria subjetividade.Como afirma Jacques Lacan no texto 'O Estádio do Espelho' , 'a imagem especular precipita a matriz simbólica do eu'. Ou seja, 'o estádio do espelho inaugura a dialética que desde então liga o 'eu' a situações socialmente elaboradas'.
Os processos da comunicação e de interação social não são importantes apenas para a criação de leis e de mensagens que regulam a civilização e o convívio social. Antes, eles são decisivos para o surgimento da própria linguagem no bicho humano, que, à medida que adquire os seus signos - por escolha voluntária ou involuntária - vai estruturando o seu próprio 'eu'.
Tanto a Comunicação Social quanto a Psicanálise têm no sujeito e na interação social seus veículos privilegiados para a transmissão da oralidade (notícias) e do saber (subjetividade) que deles provêm. Em comunicação social, tal processo é conhecido pelo nome de 'feedback', ou retroalimentação.
Por isso, Jung pôde dizer que, no outro lado da moeda, "quem olha para dentro, acorda". Olhar para dentro é abrir as cortinas que escondem os desejos mais obscuros e revelá-los para si mesmo. Quem olha para dentro, acorda porque pode enxergar a falta estruturante do sujeito, suas fantasias e o hiato no qual cabem todos os sonhos e todas as tentativas.
Faz-se isso através de transferência, todo o tempo. E todas as nossas transferências derivam de algo da ordem da complementação da falta que nos estrutura. O grande lance da psicanálise foi exatamente descobrir, como apontou Lacan, que 'sexo' deriva do mesmo radical grego da palavra 'secção', que significa 'corte'. Vários autores apontam para isso, de Platão em 'O banquete', a Caetano Veloso na letra de 'O estrangeiro' e o próprio Lacan, no 'Seminário 8'.
A transferência, chamada pela psicanálise de amor de transferência, é a ilusão de uma completude possível. Por isso, a análise caminha no sentido inverso da relação amorosa: por dizer exatamente que somos um sujeito barrado pela falta. E onde há falta, tudo cabe.

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