sexta-feira, 20 de maio de 2011

Sedução e espanto


Adriana Bacellar

A página em branco me encara, e a encaro de volta, sedução antiga mas ainda motivadora, como um amor verdadeiro. Dias tão ensolarados não convidam à introspecção ou ao trabalho duro, pelo contrário: fazem querer ir para as ruas ou recolher-se aos meros devaneios, mesmo no outono. Ou sobretudo no outono de dias tépidos e noites frias, convites explícitos ao recolhimento, ao aconchego e a tudo o que se pode sonhar fazer com outra pessoa que nos deseje ao menos em parte como sonhamos ser desejados.
A página em branco me encara, mais profundamente ainda às sexta-feiras, “sexta-feira, mais intensa que qualquer outro dia por ser véspera de tudo, embora o tudo resulte em nada, na segunda”, aspas tiradas de Caio Fernando Abreu.
Me encara, a página em branco. E como amor verdadeiro, a sedução que se renova é atração irrefreável, fascínio, tentação de resolver o enigma antes que a esfinge me coma. Como pedem as placas incansáveis, não mais alimentarei os animais, a não ser a mim mesma. Homo homini lupus: o homem é o lobo do homem, a fome é grande e ‘o meu angu primeiro’.
Sigo evitando, fingindo não vê-la, mas olhando de soslaio, usando armas antigas, expressões pouco conhecidas, me afastando do que sugerem os manuais, odeio manuais na proporção inversa em que adoro dicionários, tentativas de tradução para tudo o que não encontra outra saída além das palavras: fendas, faltas, fomes... Sonhos são eles próprios traduções, expressões de desejo que vazam, poluções noturnas, chistes, atos falhos, tudo o que é involuntário e pulsa, pulsa, pulsa – ainda e sempre.
A encaro de volta, a página em branco. Olho e não vejo nada além de mim mesma, nada além de perguntas, nada além do mesmo espelho que me desafiava na infância e que desafia vida afora, espelho, espelho meu, o mundo inteiro reduzido a olhos tão pequeninos, fábulas, óculos, vidraças e cortinas como que a refratar o medo ou a disfarçar intensidades pouco nobres entre mim e o meu desejo.
A página em branco me encara: espelho, espelho meu, existe alguém mais adjetiva do que eu? Sim, nobre rainha, a branca de neve, a gisele bündchen, qualquer outra mulher do mundo – mas não nesse momento em que a página em branco me encara e geralmente vejo o que nunca havia visto antes, por ser sempre novo desafio, uma nova página em branco, nova pergunta, nova tentativa, nova ins-piração.
Olho em volta e não vejo nada. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, Marx também tinha poesia e sabia alguma física, espaço entre átomos em constante atração e repulsa, os vãos de que somos formados, o oco sobre o qual tentamos construir uma vida inteira, tudo cabendo, nada sendo norma definida, tudo sendo lei e convenção. E lei dos mais fortes, alegrias travestidas – negros sofrimento e solidão.
Prefiro o desafio da página em branco: olhar para mim mesma, todos os dias, entre sedução e espanto.

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