quinta-feira, 28 de julho de 2011

Amy e as uvas podres


Adriana B. Leite e Santos

Não falarei do massacre que matou 76 na Noruega, da derrocada econômica dos Estados Unidos e da Europa, do escândalo dos grampos e do fechamento do "News of the World (NoW)" no Reino Unido, do passaralho no Dnit/Ministério dos Transportes e nem mesmo do novo cd de Chico Buarque, lindo disco cheio de músicas para apaixonados e sensíveis - no fundo, a mesma coisa. Algo talvez ainda mais grave aconteceu: Amy Winehouse morreu.
Depois da dor pela perda irreparável para o mundo da boa música, muita gente começou a fazer uma listinha dos que morreram aos 27 anos como ela: Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, Brian Jones, etc. A lista é grande e inclui muito sexo, drogas e rock’n’roll do bom. Pelas redes sociais, especialmente no Facebook, começou a rolar até mesmo uma piadinha com nome de gente como Luan Santana, afirmando que, se existe mesmo a tal ‘maldição dos 27’, ainda se teria de esperar mais 7 anos para se livrar do bonitinho. Infame.
É fato que a turma da pesada aí de cima sucumbiu com essa idade. Mas cada macaco no seu galho. Todos eles foram frutos de sua geração, época da revolução em Cuba, da guerra do Vietnã, do Watergate e da plena vigência da Guerra Fria entre as duas grandes potências econômicas de então, os Estados Unidos e a União Soviética. Repressão e confusão da braba, que gerou atitudes tão radicais quanto.
Além disso, houve o ‘liberou geral’ do sexo com o surgimento da pílula. Ato falho: óbvio que falo da anticoncepcional, mas já ia escrevendo ‘pílula falante’, como em Monteiro Lobato. Talvez faça todo sentido, já que o fato de ser dona do próprio corpo, para muito além e aquém do nariz, deu à mulher a autonomia até então inexistente sobre o próprio discurso.
Amy Winehouse, ao contrário, não contestava nada. Nem mesmo teve forças ou tempo para buscar ajuda para o seu mal-estar. A sua ‘dor e delícia’ de ser o que era só podia ser suportada sob quantidades industriais de drogas variadas porque ela sofria de uma solidão evidente, tudo isso aos 20 anos e sob os holofotes da mídia e dos fãs implacáveis. E é óbvio que se pode dizer que sofria muito, apesar de ter, ao que consta, uma família presente ,um pai amoroso e uma conta bancária invejável.
A estrutura psíquica de todo sujeito, segundo a psicanálise, é construída sobre uma cadeia deslizante de significação, onde o sentido é ‘montado’ sobre uma base de experiências que incluem o aprendizado da linguagem e as experiências ‘sexuais’ infantis - pois, como demonstrou Freud, elas existem, sim, na infância. E para Amy, algo dessa cadeia era falho, muito mais do que para os neuróticos habituais.
É claro que quem consome aquela quantidade de birita, cocaína, heroína, tranqüilizantes e sabe-se lá mais o quê não consegue suportar a vida - ou a dor da vida - sem esses recursos. E é o mesmo que só conseguir dormir com remédios, de só conseguir trabalhar depois de muito Red Bull ou de só curtir a noite com ‘bala‘ e otras cositas. É o mesmo que ser fervorosamente religioso ou praticar ioga para se apaziguar. Freud apontou isso em 1930, em ‘O mal-estar na civilização’.
“A perversão escancara a paixão humana no que o homem tem de divisão dentro dele mesmo e que estrutura o imaginário, que é a relação especular. Nesse hiato, o desejo humano está inteiro exposto ao desejo do outro. E o desejo perverso se suporta do ideal de um objeto inanimado“. A perversão parasita que sempre ronda a fama e o sucesso finalmente conseguiu o seu objetivo. Amy, objeto da perversão do Outro, está morta. Freud e Lacan explicam.

domingo, 24 de julho de 2011

Em carne viva


Adriana Bacellar


Que diferença faria agora, tomar cicuta ou se jogar na frente de um trem, se quem sai sempre deixa a porta aberta, o vento uivando nas frestas e os dicionários calados, sem nenhuma explicação a dar?
Doeria menos que o nó na garganta que não deixa o ar passar e que sufoca os soluços engolidos junto com o uísque barato, que mal disfarça a vontade de se juntar à poeira que sobe das ruas abandonadas. Ou vontade de evaporar feito a fumaça dos cigarros, dos beijos e das juras eternizadas em papéis de seda, que queimam todos juntos nas explosões das guerras inevitáveis.
Para além de mim, para além de nós, talvez, brotam perguntas que afogam a cidadela nua dos corpos nus e inconscientes que habitam as madrugadas violentas e frias. E melancólicas como o espaço sem fronteiras que existe entre dois corações partidos. Ou como os mortos enterrados que dormem sob a chuva, sem chance de semear coisa alguma, senão vermes.
As palavras são vestes pobres, porém os únicos trapos de que dispomos como sujeitos que supõem saber. Mesmo assim, não bastam. Não nos contentamos com a pobreza da coisa dita. Tampouco aceitamos a pobreza do sentido possível. Rotos e miseráveis, nos lançamos à vida e à sua invenção rotineira como quixotes que lutam contra os moinhos da produção de senso e sentido.
Pobres fantasmas vagando entre neblina pesada. Pescadores incrédulos à espera do milagre dos peixes. É hora da flecha no coração: somos inventores de sentidos, de leis e de deuses que desrespeitamos. Somos os reis das desculpas esfarrapadas. Somos imbatíveis em fazer barulhos irritantes. Limitamos a beleza dos sussurros às capelas imponentes onde entramos tão esfarrapados como o suposto Humilde a quem se pede perdão de todos os pecados, mas cuja palavra para sempre julga e condena.
Cada um conhece bem o dicionário das próprias trapaças e traições. Mas as suas causas para sempre serão objetos arqueológicos, enterrados sob gerações de inconsciência e recalques.
E hoje, como um sádico marquês, quero botar o dedo na ferida, e quero gozar disso, da podridão ambulante em que transformamos o que poderia ser beleza, se dignificado à altura de nossas possibilidades. Mas, como ratos, preferimos as fossas às estrelas. Todos correm atrás de umas poucas hóstias que abençoem toda mentira, luxúria e ganância. Milhares de Dorian Gray colocando Botox aos quilos e fazendo a fortuna das academias, enquanto seus retratos reveladores apodrecem junto com a sobra que servimos aos serviçais.
Pensando navegar veleiros, singramos barcos de papel. E, mal colonizados por nós mesmos, continuamos trocando nossas maiores possibilidades de riqueza por miçangas e espelhinhos, por esmolinhas de atenção, já que a vaidade podre que nos sustenta se contenta com caquinhos de verdade, de dignidade e de autoestima.
Toda letra e todo ser é um hieróglifo atraente, mas os tratamos como velhas beatas, fingindo intimidade com o sagrado para disfarçar a pouca fé. Falamos qualquer coisa, descontroladamente, para apresentar alguma justificativa para sermos assim, tão tolos e cegos e maltrapilhos. Tagarelamos em vão para disfarçar o vômito incontinenti que mal seguramos após tão malfadadas travessias. Vindos do nada em direção a coisa nenhuma.


(Picture: Francis Bacon)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O delicado humano


Adriana Bacellar


Os carros passam sobre as ruas esburacadas, apressados, correndo para encontrar não se sabe o que. Nas ruas, vê-se o deserto desenvolvimentista que corta todas as árvores e expõe a sua falta de planejamento. Faz muito frio do lado de fora, muito frio trazido pelos ventos antárticos do inverno tropical, que surpreende os subdesenvolvidos, emergentes e pobres, do sudeste maravilha.
Sudeste maravilha atolado em violência social. Onde a remuneração de quem realmente trabalha é submetida aos caprichos políticos dos que se elegem usando a grana desviada. Argentina e Brasil andam decepcionando no futebol masculino, a seleção de vôlei persegue o 10º título mundial, Marta e companhia dão piruetas para comemorar os gols na Copa do Mundo de Futebol feminino e a gente assiste a tudo pelos meios de comunicação que mais isolam do que agregam.
Incansáveis vezes cantarola-se a música de Caetano: quem lê tanta notícia? Chico Buarque também canta: a dor da gente não sai no jornal. Jornaizinhos nossos de cada dia, trazendo tanta desgraça, ironia e arrogância. Tanta gente despreparada e inculta querendo publicar mais por vaidade do que por vocação.
O mundo, quando o olhamos sem ajustar o foco, é um mosaico em preto e branco de ignomínias e falta de senso. O que o colore é o toque pessoal de sonho e loucura, a dose de interpretação pessoal. Por aí, entendo a necessidade da religião: apazigua o animal feroz e voraz de cada um em prol de um coletivo um pouco mais delicado e humano.
E o que é ‘humano’? Nos intitulamos ‘seres humanos’ e, no entanto, mal sabemos o seu significado. Humanitário é o que visa o bem-estar da humanidade. Humanismo é a atitude que visa ao antropocentrismo, o homem no centro de tudo. É também a doutrina dos renascentistas (século XV) a favor do culto das línguas e das literaturas greco-latinas. Humano é bondoso e humanitário. É?
Uma das tiradas mais famosas de Nelson Rodrigues diz que brasileiro só é solidário no câncer. Na desgraça também lembramos de pedir socorro aos deuses que criamos para nos defender dos infortúnios da vida. E eles acontecem, pode crer. A atitude que você oferece diante de qualquer fato ou pessoa é exatamente aquela que você terá de qualquer fato ou pessoa. Dois mais dois são quatro, mas também sabem ser cinco, às vezes. Como também numa velha canção.
Milagres são a música, a capacidade de se estruturar sobre uma linguagem, a capacidade de juntar fonemas e sentido e achar que é tudo sólido, quando a ciência já demonstrou há tempos que tudo que é sólido desmancha no ar, existem espaços vazios entre as moléculas, o sentido é sempre deslizante, nada “é” de forma categórica e definitiva, e a única certeza é morrer.
A certeza da morte é que dá a perspectiva de humanidade ao bicho que pensa que virou gente. Homo sapiens que nada sabe. Mas alguns seguem atuando como se imortais fossem, ou ao menos expondo toda a sua pretensão de sê-lo. Seria cômico, não fosse trágico e matasse tanta gente de peste, guerra ou fome. Chega de indulgência com tamanha ignorância.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Cobras, livros e lagartos


Adriana Bacellar

A Folha de S. Paulo publicou, outro dia, a fotografia de uma cobra de duas cabeças. Trata-se do segundo caso assim registrado no mundo e a cobra, uma piton de 50 centímetros, é de um criador de répteis que vive na Alemanha. A Alemanha é um país curioso: nos deu Wagner, Beethoven, Brahms e sobretudo Bach; Goethe, Thomas Mann, Karl Marx, Lou Andreas-Salomé, Nietzsche, Hermann Hesse e Heidegger. Timaço para ninguém botar defeito. Mas também pariu Hitler, Goëring, Goebbels e o holocausto, o que basta para evidenciar um certo traço esquizóide do país que, inclusive, já esteve mesmo dividido em dois durante a Guerra Fria (informe-se).
Pensei na hora em Hilda Hilst, grandíssima escritora, poeta, dramaturga e cronista brasileira que nasceu em 1930 e morreu em 2004 e que, inclusive, era quem escrevia esse tal “informe-se” nas suas crônicas. Grandíssima escritora, enorme escritora, indispensável mesmo. Como ando lendo seus “Cascos & carícias & outras crônicas” (editora Globo, 2001), juntei a notícia da cobra com os textos do livro e imediatamente comecei uma crônica que dizia “muito marmanjo por aí já deve estar se revirando de inveja”.
Cobra de duas cabeças? Era só o que faltava! Os acionistas do grupo Pão de Açúcar querem comprar o Carrefour, mas é a gente que vai entrar com os R$ 4 bilhões para viabilizar a transação, via BNDES. Ainda não sei onde estão as minhas ações desse banco público brasileiro que gosta de financiar ganhos privados, mas hei de encontrá-las. Afinal, é da maior rede de supermercados do país que estamos falando, e a grande amizade que liga Abílio Diniz a Lula deve bastar como garantia do negócio.
O que é a palavra num país de semi-analfabetos... Políticos, por exemplo, adoram falar em “ética”, mas desconfia-se que não tenham a menor noção do que realmente trata o vocábulo.
Exemplos a rodo, difícil escolher! Depois de passear de jatinho Legacy e similares para a Europa, na época da escolha da sede das Olimpíadas 2016, e para Trancoso, Bahia, mês passado, agora o governador do Rio pretende criar um código de ética para o próprio cargo. Tudo porque o helicóptero que o levou para a festa de aniversário de um outro empresário (que tem mais de R$ 1 bilhão em contratos com o Estado do Rio) caiu mês passado, matando boa parte da família do tal nababo, e só por isso os jornais fuçaram a história e descobriram as ‘facilidades’ proporcionadas por super-empresários ao atual ocupante da maior cadeira do Palácio Guanabara.
Já na terra da garoa, a prefeitura pretende torrar R$ 420 milhões em incentivos fiscais ao Corinthians e à Odebrecht para a construção do estádio de futebol do time. Vejam bem, trata-se de uma prefeitura injetando dinheiro público numa obra que irá beneficiar a maior empreiteira do país e um clube privado: dinheiro público financiando, de novo, ganhos privados.
As incongruências, os absurdos, a selvageria, a estupidez, o imponderável e o caos que nos rodeia tratam tudo isso como muito natural. Roubam bilhões, trilhões até, mas se algum pobre coitado rouba um desodorante ou um shampoo no mercado, correm atrás dele até expô-lo aos jornalecos de província e enfiá-lo atrás das grades. O que tem a cobra de duas cabeças com tudo isso? Interpretações ao gosto do freguês. Minha conexão foi pela via do absurdo, mas garanto que já estão pensando besteira. Pornografia é aceitar calado os absurdos desse mundo.