sexta-feira, 8 de julho de 2011

O delicado humano


Adriana Bacellar


Os carros passam sobre as ruas esburacadas, apressados, correndo para encontrar não se sabe o que. Nas ruas, vê-se o deserto desenvolvimentista que corta todas as árvores e expõe a sua falta de planejamento. Faz muito frio do lado de fora, muito frio trazido pelos ventos antárticos do inverno tropical, que surpreende os subdesenvolvidos, emergentes e pobres, do sudeste maravilha.
Sudeste maravilha atolado em violência social. Onde a remuneração de quem realmente trabalha é submetida aos caprichos políticos dos que se elegem usando a grana desviada. Argentina e Brasil andam decepcionando no futebol masculino, a seleção de vôlei persegue o 10º título mundial, Marta e companhia dão piruetas para comemorar os gols na Copa do Mundo de Futebol feminino e a gente assiste a tudo pelos meios de comunicação que mais isolam do que agregam.
Incansáveis vezes cantarola-se a música de Caetano: quem lê tanta notícia? Chico Buarque também canta: a dor da gente não sai no jornal. Jornaizinhos nossos de cada dia, trazendo tanta desgraça, ironia e arrogância. Tanta gente despreparada e inculta querendo publicar mais por vaidade do que por vocação.
O mundo, quando o olhamos sem ajustar o foco, é um mosaico em preto e branco de ignomínias e falta de senso. O que o colore é o toque pessoal de sonho e loucura, a dose de interpretação pessoal. Por aí, entendo a necessidade da religião: apazigua o animal feroz e voraz de cada um em prol de um coletivo um pouco mais delicado e humano.
E o que é ‘humano’? Nos intitulamos ‘seres humanos’ e, no entanto, mal sabemos o seu significado. Humanitário é o que visa o bem-estar da humanidade. Humanismo é a atitude que visa ao antropocentrismo, o homem no centro de tudo. É também a doutrina dos renascentistas (século XV) a favor do culto das línguas e das literaturas greco-latinas. Humano é bondoso e humanitário. É?
Uma das tiradas mais famosas de Nelson Rodrigues diz que brasileiro só é solidário no câncer. Na desgraça também lembramos de pedir socorro aos deuses que criamos para nos defender dos infortúnios da vida. E eles acontecem, pode crer. A atitude que você oferece diante de qualquer fato ou pessoa é exatamente aquela que você terá de qualquer fato ou pessoa. Dois mais dois são quatro, mas também sabem ser cinco, às vezes. Como também numa velha canção.
Milagres são a música, a capacidade de se estruturar sobre uma linguagem, a capacidade de juntar fonemas e sentido e achar que é tudo sólido, quando a ciência já demonstrou há tempos que tudo que é sólido desmancha no ar, existem espaços vazios entre as moléculas, o sentido é sempre deslizante, nada “é” de forma categórica e definitiva, e a única certeza é morrer.
A certeza da morte é que dá a perspectiva de humanidade ao bicho que pensa que virou gente. Homo sapiens que nada sabe. Mas alguns seguem atuando como se imortais fossem, ou ao menos expondo toda a sua pretensão de sê-lo. Seria cômico, não fosse trágico e matasse tanta gente de peste, guerra ou fome. Chega de indulgência com tamanha ignorância.

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