domingo, 24 de julho de 2011

Em carne viva


Adriana Bacellar


Que diferença faria agora, tomar cicuta ou se jogar na frente de um trem, se quem sai sempre deixa a porta aberta, o vento uivando nas frestas e os dicionários calados, sem nenhuma explicação a dar?
Doeria menos que o nó na garganta que não deixa o ar passar e que sufoca os soluços engolidos junto com o uísque barato, que mal disfarça a vontade de se juntar à poeira que sobe das ruas abandonadas. Ou vontade de evaporar feito a fumaça dos cigarros, dos beijos e das juras eternizadas em papéis de seda, que queimam todos juntos nas explosões das guerras inevitáveis.
Para além de mim, para além de nós, talvez, brotam perguntas que afogam a cidadela nua dos corpos nus e inconscientes que habitam as madrugadas violentas e frias. E melancólicas como o espaço sem fronteiras que existe entre dois corações partidos. Ou como os mortos enterrados que dormem sob a chuva, sem chance de semear coisa alguma, senão vermes.
As palavras são vestes pobres, porém os únicos trapos de que dispomos como sujeitos que supõem saber. Mesmo assim, não bastam. Não nos contentamos com a pobreza da coisa dita. Tampouco aceitamos a pobreza do sentido possível. Rotos e miseráveis, nos lançamos à vida e à sua invenção rotineira como quixotes que lutam contra os moinhos da produção de senso e sentido.
Pobres fantasmas vagando entre neblina pesada. Pescadores incrédulos à espera do milagre dos peixes. É hora da flecha no coração: somos inventores de sentidos, de leis e de deuses que desrespeitamos. Somos os reis das desculpas esfarrapadas. Somos imbatíveis em fazer barulhos irritantes. Limitamos a beleza dos sussurros às capelas imponentes onde entramos tão esfarrapados como o suposto Humilde a quem se pede perdão de todos os pecados, mas cuja palavra para sempre julga e condena.
Cada um conhece bem o dicionário das próprias trapaças e traições. Mas as suas causas para sempre serão objetos arqueológicos, enterrados sob gerações de inconsciência e recalques.
E hoje, como um sádico marquês, quero botar o dedo na ferida, e quero gozar disso, da podridão ambulante em que transformamos o que poderia ser beleza, se dignificado à altura de nossas possibilidades. Mas, como ratos, preferimos as fossas às estrelas. Todos correm atrás de umas poucas hóstias que abençoem toda mentira, luxúria e ganância. Milhares de Dorian Gray colocando Botox aos quilos e fazendo a fortuna das academias, enquanto seus retratos reveladores apodrecem junto com a sobra que servimos aos serviçais.
Pensando navegar veleiros, singramos barcos de papel. E, mal colonizados por nós mesmos, continuamos trocando nossas maiores possibilidades de riqueza por miçangas e espelhinhos, por esmolinhas de atenção, já que a vaidade podre que nos sustenta se contenta com caquinhos de verdade, de dignidade e de autoestima.
Toda letra e todo ser é um hieróglifo atraente, mas os tratamos como velhas beatas, fingindo intimidade com o sagrado para disfarçar a pouca fé. Falamos qualquer coisa, descontroladamente, para apresentar alguma justificativa para sermos assim, tão tolos e cegos e maltrapilhos. Tagarelamos em vão para disfarçar o vômito incontinenti que mal seguramos após tão malfadadas travessias. Vindos do nada em direção a coisa nenhuma.


(Picture: Francis Bacon)

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