sexta-feira, 1 de julho de 2011

Cobras, livros e lagartos


Adriana Bacellar

A Folha de S. Paulo publicou, outro dia, a fotografia de uma cobra de duas cabeças. Trata-se do segundo caso assim registrado no mundo e a cobra, uma piton de 50 centímetros, é de um criador de répteis que vive na Alemanha. A Alemanha é um país curioso: nos deu Wagner, Beethoven, Brahms e sobretudo Bach; Goethe, Thomas Mann, Karl Marx, Lou Andreas-Salomé, Nietzsche, Hermann Hesse e Heidegger. Timaço para ninguém botar defeito. Mas também pariu Hitler, Goëring, Goebbels e o holocausto, o que basta para evidenciar um certo traço esquizóide do país que, inclusive, já esteve mesmo dividido em dois durante a Guerra Fria (informe-se).
Pensei na hora em Hilda Hilst, grandíssima escritora, poeta, dramaturga e cronista brasileira que nasceu em 1930 e morreu em 2004 e que, inclusive, era quem escrevia esse tal “informe-se” nas suas crônicas. Grandíssima escritora, enorme escritora, indispensável mesmo. Como ando lendo seus “Cascos & carícias & outras crônicas” (editora Globo, 2001), juntei a notícia da cobra com os textos do livro e imediatamente comecei uma crônica que dizia “muito marmanjo por aí já deve estar se revirando de inveja”.
Cobra de duas cabeças? Era só o que faltava! Os acionistas do grupo Pão de Açúcar querem comprar o Carrefour, mas é a gente que vai entrar com os R$ 4 bilhões para viabilizar a transação, via BNDES. Ainda não sei onde estão as minhas ações desse banco público brasileiro que gosta de financiar ganhos privados, mas hei de encontrá-las. Afinal, é da maior rede de supermercados do país que estamos falando, e a grande amizade que liga Abílio Diniz a Lula deve bastar como garantia do negócio.
O que é a palavra num país de semi-analfabetos... Políticos, por exemplo, adoram falar em “ética”, mas desconfia-se que não tenham a menor noção do que realmente trata o vocábulo.
Exemplos a rodo, difícil escolher! Depois de passear de jatinho Legacy e similares para a Europa, na época da escolha da sede das Olimpíadas 2016, e para Trancoso, Bahia, mês passado, agora o governador do Rio pretende criar um código de ética para o próprio cargo. Tudo porque o helicóptero que o levou para a festa de aniversário de um outro empresário (que tem mais de R$ 1 bilhão em contratos com o Estado do Rio) caiu mês passado, matando boa parte da família do tal nababo, e só por isso os jornais fuçaram a história e descobriram as ‘facilidades’ proporcionadas por super-empresários ao atual ocupante da maior cadeira do Palácio Guanabara.
Já na terra da garoa, a prefeitura pretende torrar R$ 420 milhões em incentivos fiscais ao Corinthians e à Odebrecht para a construção do estádio de futebol do time. Vejam bem, trata-se de uma prefeitura injetando dinheiro público numa obra que irá beneficiar a maior empreiteira do país e um clube privado: dinheiro público financiando, de novo, ganhos privados.
As incongruências, os absurdos, a selvageria, a estupidez, o imponderável e o caos que nos rodeia tratam tudo isso como muito natural. Roubam bilhões, trilhões até, mas se algum pobre coitado rouba um desodorante ou um shampoo no mercado, correm atrás dele até expô-lo aos jornalecos de província e enfiá-lo atrás das grades. O que tem a cobra de duas cabeças com tudo isso? Interpretações ao gosto do freguês. Minha conexão foi pela via do absurdo, mas garanto que já estão pensando besteira. Pornografia é aceitar calado os absurdos desse mundo.

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