quinta-feira, 24 de março de 2011

Mapa do tesouro





Adriana B. Leite e Santos

Notícias, notícias e mais notícias. Como em “Alegria, alegria”, de Caetano, quem lê tanta notícia? Secretaria de Segurança do Estado fez operação conjunta na cidade, depois de vários assassinatos, inclusive na Zona Sul. Obama visitou o Brasil com a família, estreitando laços com o país depois da política externa duvidosa do governo Lula. Radiação se espalha pelo Japão depois do terremoto seguido de tsunami. Apple lançou o iPad 2, agora com câmeras. iTunes posta aplicativo que promete a cura gay, causando uma petição on-line, assinada por mais de 100 mil, para a sua retirada.
Cura gay? Bem, se até religião promete a cura gay e se o presidente do Irã diz que não há homossexuais em seu país, tem gente que deve acreditar. Mas pode o sujeito se curar daquilo que o define? Como assim? Em termos muito leigos, a aquisição da linguagem pelos humanos vem no rastro do desmame e da descoberta de nossa própria imagem no espelho. Segundo a psicanálise, esse é o momento em que se instaura em nós a falta. Onde há falta, há um hiato. Onde há um hiato no sujeito, é onde se aloja o simbólico, ou os significantes (signos) de que nos utilizamos para sermos um sujeito desejante. E onde há desejo, há sonhos, fantasias e recalques, todos os signos que estruturam nosso inconsciente, que nos governa.
Se um sujeito qualquer encaminha seu desejo para um homem ou para uma mulher, isso se deve aos significantes que ele adquiriu em seu crescimento. Daí, ser hétero ou homoerótico seria somente uma relação simbólica. Uma questão de linguagem, praticamente.
Freud, inclusive, apontou para a bissexualidade humana em um de seus livros mais importantes, a saber ‘Os três ensaios sobre a sexualidade’, de 1905. Data do mesmo ano a publicação de ‘O caso Dora’ e ‘O chiste’. Diz Freud: “Algo no indivíduo vai ao encontro (da inversão). Certo grau de hermafroditismo anatômico constitui a norma. Em nenhum indivíduo masculino ou feminino de conformação normal faltam vestígios do sexo oposto. (...) A concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de uma predisposição originariamente bissexual que, no curso do desenvolvimento, vai-se transformando em monossexualidade”.
Ou não, como diria a lenda sobre o mesmo Caetano.
A questão é que, em termos de desejo, somos todos estrangeiros. Não conhecemos as razões do nosso desejo. Isso só seria possível se parássemos e, como numa análise, tentássemos descobrir as nossas associações livres, os chistes (brincadeiras, voluntárias ou não) e os atos falhos que cometemos, e tudo o mais que estrutura o nosso inconsciente.
Atirar uma pedra na vidraça desejante do vizinho é dar um tiro no próprio pé: como temos problemas com o próprio desejo, tratamos de cuidar da grama do vizinho. Como a Líbia é a 2ª maior produtora de petróleo do mundo, vamos aproveitar o sofrimento e a tardia revolta do seu povo para atacar o país. Foi assim no Iraque.
O sofrimento humano é individual e coletivo. Saúde mental é questão de saúde pública, assim como segurança, educação pública, moralidade política e o grau de cidadania. Mas estar em paz com o seu desejo (inclusive o perverso) é tarefa individual. Se cada um cuidar do próprio nariz, quem sabe o mundo não terá um pouco mais de paz?

terça-feira, 15 de março de 2011

Dormir e acordar


Adriana B. Leite e Santos


"Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda". A frase é de Carl Jung, psicanalista que foi discípulo de Sigmund Freud e que, depois de uma estreita colaboração com o pai da psicanálise, virou dissidente do movimento psicanalítico por não concordar com algumas de suas premissas mais caras. Nem por isso Jung deixou de ter grande importância para Freud e para o desenvolvimento do novo saber sobre a mente humana instituído há pouco mais de 100 anos pelo vienense.
"Quem olha para fora, sonha". Quem olha para o mundo, olhou antes para um espelho. Se viu com o olhar desse mesmo mundo. Esse olhar introduz o aprendizado da utilização de signos e símbolos produzidos em sociedade. A partir daí, o sujeito tenta codificar e decodificar as mensagens que o mundo e o inconsciente enviam, incessantemente. Codificar e decodificar mensagens incluem aprendizados prévios e expectativas futuras. Implicam, portanto, em projeções. Em sonhos. Ou, em linguagem psicanalítica, em fantasias.
Ao olhar para fora, o homem seleciona as imagens que lhe são mais caras. Ao olhar para fora do seu umbigo, o bebê humano necessariamente vê ali o olhar do outro. A exterioridade constitui a nossa subjetividade a partir do momento em que introduz um outro olhar - o olhar do outro - sobre nós mesmos. Ela introduz a intermediação cultural em nossas relações com nossa própria subjetividade.Como afirma Jacques Lacan no texto 'O Estádio do Espelho' , 'a imagem especular precipita a matriz simbólica do eu'. Ou seja, 'o estádio do espelho inaugura a dialética que desde então liga o 'eu' a situações socialmente elaboradas'.
Os processos da comunicação e de interação social não são importantes apenas para a criação de leis e de mensagens que regulam a civilização e o convívio social. Antes, eles são decisivos para o surgimento da própria linguagem no bicho humano, que, à medida que adquire os seus signos - por escolha voluntária ou involuntária - vai estruturando o seu próprio 'eu'.
Tanto a Comunicação Social quanto a Psicanálise têm no sujeito e na interação social seus veículos privilegiados para a transmissão da oralidade (notícias) e do saber (subjetividade) que deles provêm. Em comunicação social, tal processo é conhecido pelo nome de 'feedback', ou retroalimentação.
Por isso, Jung pôde dizer que, no outro lado da moeda, "quem olha para dentro, acorda". Olhar para dentro é abrir as cortinas que escondem os desejos mais obscuros e revelá-los para si mesmo. Quem olha para dentro, acorda porque pode enxergar a falta estruturante do sujeito, suas fantasias e o hiato no qual cabem todos os sonhos e todas as tentativas.
Faz-se isso através de transferência, todo o tempo. E todas as nossas transferências derivam de algo da ordem da complementação da falta que nos estrutura. O grande lance da psicanálise foi exatamente descobrir, como apontou Lacan, que 'sexo' deriva do mesmo radical grego da palavra 'secção', que significa 'corte'. Vários autores apontam para isso, de Platão em 'O banquete', a Caetano Veloso na letra de 'O estrangeiro' e o próprio Lacan, no 'Seminário 8'.
A transferência, chamada pela psicanálise de amor de transferência, é a ilusão de uma completude possível. Por isso, a análise caminha no sentido inverso da relação amorosa: por dizer exatamente que somos um sujeito barrado pela falta. E onde há falta, tudo cabe.