quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Viver em tempos mortos


Adriana B. Leite e Santos

“Viver em tempos mortos” é o nome da peça de Fernanda Montenegro baseada na obra de Simone de Beauvoir que a atriz recentemente levou aos palcos de Rio e São Paulo, com casa lotada. É um bom título, não somente para uma peça de teatro como para o próprio início de milênio que estamos vivendo.
As barbáries e as brutalidades continuam a se multiplicar entre guerras ditas religiosas, falência do modelo econômico baseado na especulação financeira e crescente desigualdade social. O também crescente descaso com a educação formal, com o ensino público e com a justa remuneração do professorado só pioram a situação. Ensinar virou uma batalha desigual, que justapõe o interesse dos alunos pela internet aos métodos jurássicos ainda utilizados para ensinar o be-a-bá e todo o resto.
Tal descaso – ou conveniência – se reflete em tudo: na falta de respeito humano encontrada em praticamente todas as relações sociais, na falta de respeito aos mais velhos, na selvageria do trânsito, na desqualificação dos parlamentos, na desestruturação das famílias, no péssimo serviço prestados na maioria dos hospitais públicos e onde mais se queira.
Depois da internet, todos querem o seu computador, o seu smartphone, o seu tablet, a sua banda larga, o seu processador veloz, o seu poderoso hard-disk. Mas como a Mafalda de Quino, seria o caso de perguntar: mas para fazer o que com tudo isso? Para ler o que? Dizer o que?
Em época de carros cada vez mais velozes e reluzentes, não precisaríamos exatamente andar mais devagar? Apesar da impaciência e da boçalidade dos motoristas, poder andar devagar é, hoje, luxo para poucos. Ser organizado a ponto de não ter pressa é também um aprendizado para poucos, que vem tanto da educação formal quanto da educação familiar cada vez mais em desuso.
Muito barulho por nada ou “much ado about nothing”. Na tradução em português ou na versão original em inglês, o título de outra peça teatral, esta de Shakespeare, é perfeito para traduzir este começo de terceiro milênio, que vai se revelando não somente apressado e estridente como sobretudo vazio. Entre tantos megabites de velocidade de navegação em rede e entre tantos rodoanéis e vias expressas para carros e veículos ameaçadores, nossos navios (conotativos e denotativos) ainda afundam ao baterem em rochedos intransponíveis.
Para bem conhecer a ciência das navegações, qualquer navegação, é preciso a vontade de aprender e o tempo para estudar. Mas em tempos mortos, falta a disposição para o fundamental, que é o exercício da própria escuta, a paciência, a sabedoria de que o caminho se faz ao caminhar e o conhecimento do tamanho dos próprios passos. A neo-adolescência de um mundo escandalizado por tantas cascas forçosamente rejuvenescidas à base de intervenções externas e invasivas é o pior pesadelo para a inteligência humana.
O que importam programas de televisão feitos para explorar o sexo fácil entre seus participantes e a apatia dos seus telespectadores? O que importa a mais nova musiquinha de também fácil apelo sexual, feita para entreter humanos de sexualidade cada vez mais pobre? A infantilização crescente do mundo adulto é um atentado à inteligência dos que ainda pensam.
“Não” ao tesão fajuto, ao empobrecimento da inteligência e a “essa droga que já vem malhada antes d'eu nascer”.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Recanto meu


Adriana Leite e Santos



Numa das músicas do novo cd "Recanto", de Gal Costa, Caetano Veloso diz pela voz da sua companheira musical há mais de 40 anos que "viver é um desastre que sucede a alguns". O cd foi todo ele composto por Caetano, e já foi listado como um dos 10 melhores de 2011 em todo o Brasil. Trata-se de um álbum conceitual que segue a linha dos últimos trabalhos de Caetano, intitulados "Cê" e "Zii e Zie". Em ambos, Caetano injetou novo sopro de vida musical às suas composições a partir da parceria com músicos bem mais novos que ele, como o guitarrista Pedro Sá.
No disco de Gal, o também produtor Caetano Veloso chamou músicos como o baixista Kassin, o multi-instrumentista Davi Moraes e o pianista Daniel Jobim, neto do maestro Jobim, para ajudá-lo a imprimir um som contemporâneo às suas composições enxutas e sintéticas em termos de linguagem, tanto escrita quanto musical. “Não salto, mas sou carregada por asas que a gente não tem“. “Recanto” tem ainda a participação do violoncelo de Jacques Morelembaum, e de percussão eletrônica e sintetizadores programados por diversos músicos da nova geração, dentre os quais o seu filho Zeca.
“Mulher, aos prazeres, futuro, eu me guardei”. É um grande disco. “Cara do mundo, cara de tudo, cara do que já foi, músculo nu num filme ruim, soluço”. Disco onde as letras cantam não somente a dor de existir como a dor de envelhecer e de se saber finito. “Tudo dói, tudo dói. Viver é um desastre que sucede a alguns. Os vocábulos iridescem, os hipotálamos minguam, tudo é singular. Dói. Tudo dói”.
“Cara do mundo, máscara de carvão; máscara clara, rosto de multidão; gozo em te ver tão cara a cara assim, posso meter máscara clara em mim”. Tudo no disco faz pensar que cada um poderia ser qualquer outra pessoa, ser quem quisesse: mais um fodão qualquer a tagarelar as suas proezas; um corrupto a acumular mais do que uma formiga diariamente o faz, ou do que um formigueiro inteiro; uma puta ou um cafetão, ou suas corruptelas moderninhas ‘modelo-manequim’ e ‘agente empresarial’; médico, drogado, presidente de uma firma ou de um país, um mendigo. “Nasce uma criança entre nós homens: o menino aguenta, o menino salva, o menino sou eu”.
Mas não: é preciso chamar a responsabilidade a si. Somos quem sempre quisemos ser, sabendo disso ou não. Se na vida, as leis e o convívio social nos medem e impelem às atitudes normativas, na escrita e em seus derivativos (artes em geral), tudo vale, tudo desde sempre está prestes a ser resgatado e decifrado de qualquer jeito por qualquer um que seja capaz de fazê-lo. Na escrita e nas artes, não existe o desafinado ou o proibido: até o atonal, o palavrão, o desmedido e o sangue que jorra das feridas somem e se transformam no que é, e ponto.
Somos todos nós um monte de cadernos em branco com algumas folhas rabiscadas meio a esmo, e outras em branco, em grande maioria, onde escrevemos - passado e presente - o que quisemos e o que quisermos. Tentativas de tradução de nós mesmos. “Frente às estrelas, no ancoradouro de Madre Deus, meu corpo todo desmede-se, despede-se de si, descola-se do então, do onde, longe do longe some o limite entre o chão e o não. Frente ao infindo, costas contra o planeta, já sou a seta sem direção. Instintos e sentidos extintos, mas sei-me indo”.
E o que não sabemos de nós, quase nada ou quase tudo, é o que faz de nós o neguinho que “compra 3 tvs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz: neguinho também se acha. Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si. Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho”. “Não sofro mais assim, pois está tudo onde deve estar”. Texto, enfim, de Caetano Veloso. A voz inigualável de Gal Costa. E eu digo: viver é um milagre que sucede a alguns.

sábado, 5 de novembro de 2011

A voz das ruas







Depois que os norte-americanos resolveram resistir à insanidade do sistema financeiro que deu crédito a rodo para a construção civil e para a especulação financeira e quase quebrou o país em 2008, o movimento “Occupy Wall Street” (Ocupe Wall Street) se espalhou não só pelos Estados Unidos como também pela Europa. O movimento se seguiu às revoluções populares dos países do Norte da África e do Oriente Médio, que ficaram conhecidas como “Primavera Árabe” e derrubaram ditadores na Tunísia, no Egito e na Líbia. Também causaram muito barulho na Argélia, Bahrein, Jordânia, Iraque, Síria, Omã e Iêmen, citando alguns.
A União Européia está às voltas com dívidas impagáveis de Grécia, Portugal e Itália, e seus membros – notadamente a França de Nicolas Sarkozy e a Alemanha de Angela Merkel – propõem a aprovação de um fundo de socorro ao bloco europeu para que países e bancos em apuros não decretem a bancarrota. Para isso, sonham com a participação do governo chinês, dono das maiores reservas de moeda forte do mundo, e até mesmo do Brasil, recentemente alçado à posição de 6ª maior economia do mundo.
“Occupy Wall Street” foi a resposta democrata ao movimento republicano “Tea Party”, que varreu os Estados Unidos em 2008/09 logo após os graves problemas econômicos enfrentados pelo governo Obama com a recessão causada principalmente pela especulação financeira e imobiliária. O “Occupy” é um movimento de protesto contra a influência do capital na sociedade e contra a impunidade dos responsáveis pela crise financeira mundial, que atualmente varre todo o hemisfério Norte do planeta.
As manifestações norte-americanas começaram no dia 11 de setembro, data fatídica para os Estados Unidos desde os ataques terroristas de 2001, e ainda continuam a ocorrer, como os protestos realizados nas ruas de Atlanta, Boston, Chicago, Los Angeles, Portland e São Francisco e a paralisação do porto de Oakland, na semana passada.
Do outro lado do Atlântico, também em função dos graves problemas financeiros enfrentados por alguns países do bloco europeu e pelo desemprego que já ameaça a população, as manifestações tomaram as ruas das principais cidades da Europa, como Paris, Roma, Madri, Barcelona, etc. Durante a reunião do G20, realizada nos dias 3 e 4 de novembro, os manifestantes se deslocaram para Cannes, em Nice (França), e transformaram a cidade, famosa pelo seu Festival de Cinema, em palco da luta contra a desigualdade social, a ganância empresarial e o capitalismo como um todo.
Trata-se do acontecimento político mais importante desde os movimentos sociais da década de 60, como a Primavera de Praga (Tchecoslováquia), o Maio de 68 (França) e as lutas contra as ditaduras militares do Cone Sul. Pela primeira vez, desde então, a população de países tão diferentes quanto Estados Unidos, França, Tunísia, Egito e Brasil (na sua luta contra a corrupção endêmica) têm ido às ruas para protestar contra a desigualdade social, a especulação financeira e os valores econômicos que soterraram os valores humanos nas últimas décadas. Mesmos motivos que levaram os jovens a lutar contra a Guerra do Vietnã, pelo “Paz e Amor” e pelo “Flower Power”.
Mais do que ocupações geopolíticas, tais movimentos representam a crise estrutural enfrentada atualmente pelo capitalismo. É a reação da sociedade à insanidade dos mercados e à percepção de que as leis que a regem são, basicamente, a lei dos outros. Dos poucos outros que se beneficiam economicamente da pobreza e da imobilidade de muitos.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Despotismo esclarecido





Hoje começa a primavera e, assim como mudam as estações e o tempo em todo o planeta, mudam também as disposições internas e a temperatura de corpos celestes e terrestres, pessoas aí incluídas. A uma explosão de massas polares e ar muito seco no hemisfério sul se seguirá necessariamente a volta das flores, os dias mais longos, as noites mais quentes, a preparação para a explosão do verão e do ápice da sensualidade que irá preparar para outro tempo de posterior recolhimento e para outras futuras explosões de calor e de alegria.
Alguns povos muito antigos, como os chineses, expressam toda essa alternância em livros milenares, que se caracterizam por ilustrar as mutações a que todo ser vivo está sujeito. Quem aceita as transformações, e encara de frente as dúvidas que as precedem, costuma sofrer menos do que os encastelados em carapaças que, por mais duras que sejam, sempre se quebram, um dia.
Parece que, ao descobrir as leis da física, Newton também antecipou alguns mandamentos da ordem do inconsciente, principalmente aquele que diz que a toda ação, segue-se uma reação. Somos fruto de uma sucessão de atos e acasos. Nada do que se sonha ou do que se deseja vem do nada, e nem vai cair no colo de ninguém sem que muito empenho tenha sido despendido, antes.
É um pouco isso, o verão: a estação em que tudo o que estava em gestação atinge o seu ápice e explode em possibilidades acalentadas previamente. É o tempo da rua, do sol, do discutível horário de verão, da natureza sensual dos corpos bem-cuidados e de todas as possibilidades de alegria acalentadas por quase todo mundo.
Só não se pode acreditar, em meio a toda essa festa erótico-solar que renova as esperanças até mesmo de quem já anda usando o comprimidinho azul, na teoria de que o Homem é um ser bom, o que sempre foi objeto de pesquisa e de discussão entre filósofos de todos os tempos. Bem e mal sempre estiveram na pauta de quase todo pensador, de Heráclito, Platão, Aristóteles e Sócrates a Espinosa, Kant e Nietzsche, que disse que "o homem é criador de valores, mas esquece a sua própria criação". Jean-Jacques Rousseau construiu a teoria do "bom selvagem" e outros iluministas, como Voltaire, construíram suas teorias em resposta ao "despotismo esclarecido" de sua época.
Por trás dos panos, sabemos: o homem não é e nem nunca foi bom. Antes, doma os seus instintos perversos à custa de muito sofrimento psíquico. Como diz Nietzsche em ‘A gaia ciência’, ‘viver é, para nós, constantemente transformar em luz, em chama, tudo aquilo que somos'. Em qualquer latitude ou paralelo, são poucos os que verdadeiramente conseguem. E não há sol de primavera ou calor de verão que seja capaz de esconder a verdade primária de todo sujeito: como afirmou Jacques Lacan, peremptório e sucinto, o homem é "um animal feroz". Jornais e telejornais diários não o deixam mentir.

sábado, 27 de agosto de 2011

O planeta diamante


O nome dele é uma sigla: PSR J1719-1438. O novo pulsar detectado recentemente por pesquisadores australianos é como qualquer outro: uma estrela de nêutrons extremamente densa e que gira muito rapidamente, emitindo pulsos de rádio a intervalos regulares – raiz do seu nome. Astros do tipo giram em torno do seu próprio eixo aproximadamente mais de 10 mil vezes por minuto, e por isso são conhecidos como “pulsares de milissegundos”.
Segundo os pesquisadores da Universidade de Tecnologia Swinburne, na Austrália, e autores do artigo publicado na semana passada na revista “Science”, cerca de 70% dos pulsares de milissegundos conhecidos têm algum tipo de companheiro. Esses companheiros são planetas que têm a importante função de transformar pulsares velhos em pulsares de milissegundos “ao transferirem sua massa e momento para eles, fazendo com que girem cada vez mais rápido. O resultado do sistema é um pulsar com velocidade de rotação extremamente alta com um companheiro encolhido em sua órbita, em geral uma estrela anã branca”.
Para quem quiser conhecer mais detalhes da pesquisa australiana, é preciso saber inglês e acessar o site de uma das mais importantes revistas internacionais dedicadas ao tema (www.sciencemag.org) e publicada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS na sigla em inglês). Para além do interesse científico, porém, a matéria da “Science” traz uma grande novidade: o planeta companheiro do pulsar, que teve todas as suas camadas externas e mais de 99% de sua massa sugadas por ele, transformou-se num planeta de diamante, uma esfera de carbono e oxigênio, de alta densidade e em forma cristalina.
A notícia é mais um fato a comprovar que os poetas são visionários que antevêem coisas que os cientistas só muito posteriormente constatarão. O fato de um planeta ou estrela ter-se transformado, por leis naturais, em companheiro/a de um pulsar, e essa relação dar vida nova a um astro antes moribundo, ocorre também em toda e qualquer relação humana.
O poeta Carlos Drummond de Andrade, que será o homenageado da Festa Literária de Paraty em 2012, escreveu isso em seu poema “Canção Amiga”. Publicado em 1948 no livro “Novos Poemas”, da José Olympio Editores, e musicado por Milton Nascimento no disco “Clube de Esquina 2”, de 1978, o poema de Drummond diz, em seus últimos versos: “Do jeito mais natural, dois carinhos se procuram. Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Aprendi novas palavras, e tornei outras mais belas”.
Uma análise gramatical do poema de Drummond poderia dizer que “Canção Amiga” é um dos textos mais fluentes e mais musicais do poeta de Itabira, escrito em redondilhas maiores, de sete sílabas. Poderia ir além e dizer ainda que, no poema, a tão desejada harmonia da vida é anunciada para além de todas as precariedades do sujeito. Estrofes regulares, de quatro em quatro versos, promovem a interação entre os redondilhos e o coloquial, com intensa expressividade.
Quanto a mim, prefiro a alegria de saber que lá fora, na imensidão negra e infinita, os astros também estão submetidos às mesmas leis de atração e repulsão às quais somos submetidos no planeta azul. Que, para além de toda solidão, também precisam de um outro para sentir-se rejuvenescido e para encontrar novas razões para a sua pulsão. E que disso podem resultar pérolas. Ou diamantes por lapidar.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Fome



Adriana B. Leite e Santos

Pessoas adoram consolos de todos os tipos. Colinhos, compreensões várias, palavrinhas de estímulo ou de auto-ajuda, vibradores, divãs e confessionários onde aplacar a culpa pela própria miséria. A corrida ao tesouro atual inclui a busca pela tal da "felicidade", especialmente em forma de corrida à fonte da juventude que, como reza a lenda, permitiria que a vida fosse eternizada no auge do vigor físico da espécime.
Nunca conheci ninguém de idade a quem o eufemismo “feliz idade” pode ser aplicado. Todos já entrados nos anos questionam ou questionavam, entre outras coisas, a perda de agilidade e de viço, a pressão arterial, o colesterol e as rugas, além das flatulências. Ainda que a pessoa não seja de muitas reclamações, são indiscutíveis as limitações que a idade impõe a cada um. Em todos, porém, o tal consolo: a agilidade mental e a sagacidade da idade supera, em muito, as deficiências físicas naturais do passar do tempo. O que mantém alguém de pé, por outro lado, não é nada disso, e sim a capacidade de ainda desejar coisas, independente da idade, e de tentar viver cada dia com a plenitude possível.
Nunca basta muito ou pouco para ser feliz. Simplesmente a tal felicidade é um conceito abstrato demais num mundo sustentado por signos e subjetividades. Conceber-se feliz num mundo onde milhares de crianças morrem de fome - na Somália, no Djibuti, no Quênia ou no Brasil - é a mais absoluta prova de que A felicidade é impossível neste mundo. Instantes de felicidade, no entanto, são plenamente possíveis, e tornam a vida mesma mais suportável; e alongam a vista para além do ceticismo que tudo resseca e desestimula.
Paixões costumam permitir tal experiência de felicidade quando é correspondida. Amor por filho também. Mas não se pode dizer o mesmo do amor entre duas pessoas, que – como disse o poetinha – só é bom se doer. E dói, mais cedo ou mais tarde. Desde que não vire o conformismo acomodado dos casais sem muito assunto, ou a mentira mal disfarçada dos traidores compulsivos, amor dói, especialmente quando deixa de ser colo e passa a ser pé no chão ressequido e reconhecimento da fome que nunca cessa.
Fome, fomes. Os Titãs acertaram na mosca quando perguntaram, numa de suas canções, "Você tem fome de que?". Grana? Forma física invejável? Ascensão social? Poder? Justiça social? Justiça pessoal?
Pois as crianças indígenas brasileiras têm fome de comida mesmo, assim como as crianças africanas que estão morrendo aos milhares por falta absoluta do que comer. Enquanto a gente finge que é cidadão, indo votar nos inescrupulosos de dois em dois anos, e eles fingem que são diferentes uns dos outros durante as famigeradas e caras campanhas eleitorais, as crianças do Brasil estão morrendo de fome ou vendendo seus corpos aos marmanjos safados porque a corrupção generalizada que corrói o país, como as antigas saúvas, não deixa as verbas federais chegarem a quem realmente precisa.
Do outro lado do Atlântico, as crianças africanas do chamado Chifre da África também estão morrendo de fome na Somália, no Quênia, na Etiópia e no Djibuti. É o testemunho fúnebre da combinação de tragédia climática, alta inescrupulosa do preço dos alimentos e conflito armado, além de indiferença mundial. Einstein obviamente tinha razão: a estupidez humana é mesmo infinita.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Amy e as uvas podres


Adriana B. Leite e Santos

Não falarei do massacre que matou 76 na Noruega, da derrocada econômica dos Estados Unidos e da Europa, do escândalo dos grampos e do fechamento do "News of the World (NoW)" no Reino Unido, do passaralho no Dnit/Ministério dos Transportes e nem mesmo do novo cd de Chico Buarque, lindo disco cheio de músicas para apaixonados e sensíveis - no fundo, a mesma coisa. Algo talvez ainda mais grave aconteceu: Amy Winehouse morreu.
Depois da dor pela perda irreparável para o mundo da boa música, muita gente começou a fazer uma listinha dos que morreram aos 27 anos como ela: Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, Brian Jones, etc. A lista é grande e inclui muito sexo, drogas e rock’n’roll do bom. Pelas redes sociais, especialmente no Facebook, começou a rolar até mesmo uma piadinha com nome de gente como Luan Santana, afirmando que, se existe mesmo a tal ‘maldição dos 27’, ainda se teria de esperar mais 7 anos para se livrar do bonitinho. Infame.
É fato que a turma da pesada aí de cima sucumbiu com essa idade. Mas cada macaco no seu galho. Todos eles foram frutos de sua geração, época da revolução em Cuba, da guerra do Vietnã, do Watergate e da plena vigência da Guerra Fria entre as duas grandes potências econômicas de então, os Estados Unidos e a União Soviética. Repressão e confusão da braba, que gerou atitudes tão radicais quanto.
Além disso, houve o ‘liberou geral’ do sexo com o surgimento da pílula. Ato falho: óbvio que falo da anticoncepcional, mas já ia escrevendo ‘pílula falante’, como em Monteiro Lobato. Talvez faça todo sentido, já que o fato de ser dona do próprio corpo, para muito além e aquém do nariz, deu à mulher a autonomia até então inexistente sobre o próprio discurso.
Amy Winehouse, ao contrário, não contestava nada. Nem mesmo teve forças ou tempo para buscar ajuda para o seu mal-estar. A sua ‘dor e delícia’ de ser o que era só podia ser suportada sob quantidades industriais de drogas variadas porque ela sofria de uma solidão evidente, tudo isso aos 20 anos e sob os holofotes da mídia e dos fãs implacáveis. E é óbvio que se pode dizer que sofria muito, apesar de ter, ao que consta, uma família presente ,um pai amoroso e uma conta bancária invejável.
A estrutura psíquica de todo sujeito, segundo a psicanálise, é construída sobre uma cadeia deslizante de significação, onde o sentido é ‘montado’ sobre uma base de experiências que incluem o aprendizado da linguagem e as experiências ‘sexuais’ infantis - pois, como demonstrou Freud, elas existem, sim, na infância. E para Amy, algo dessa cadeia era falho, muito mais do que para os neuróticos habituais.
É claro que quem consome aquela quantidade de birita, cocaína, heroína, tranqüilizantes e sabe-se lá mais o quê não consegue suportar a vida - ou a dor da vida - sem esses recursos. E é o mesmo que só conseguir dormir com remédios, de só conseguir trabalhar depois de muito Red Bull ou de só curtir a noite com ‘bala‘ e otras cositas. É o mesmo que ser fervorosamente religioso ou praticar ioga para se apaziguar. Freud apontou isso em 1930, em ‘O mal-estar na civilização’.
“A perversão escancara a paixão humana no que o homem tem de divisão dentro dele mesmo e que estrutura o imaginário, que é a relação especular. Nesse hiato, o desejo humano está inteiro exposto ao desejo do outro. E o desejo perverso se suporta do ideal de um objeto inanimado“. A perversão parasita que sempre ronda a fama e o sucesso finalmente conseguiu o seu objetivo. Amy, objeto da perversão do Outro, está morta. Freud e Lacan explicam.