sábado, 5 de novembro de 2011

A voz das ruas







Depois que os norte-americanos resolveram resistir à insanidade do sistema financeiro que deu crédito a rodo para a construção civil e para a especulação financeira e quase quebrou o país em 2008, o movimento “Occupy Wall Street” (Ocupe Wall Street) se espalhou não só pelos Estados Unidos como também pela Europa. O movimento se seguiu às revoluções populares dos países do Norte da África e do Oriente Médio, que ficaram conhecidas como “Primavera Árabe” e derrubaram ditadores na Tunísia, no Egito e na Líbia. Também causaram muito barulho na Argélia, Bahrein, Jordânia, Iraque, Síria, Omã e Iêmen, citando alguns.
A União Européia está às voltas com dívidas impagáveis de Grécia, Portugal e Itália, e seus membros – notadamente a França de Nicolas Sarkozy e a Alemanha de Angela Merkel – propõem a aprovação de um fundo de socorro ao bloco europeu para que países e bancos em apuros não decretem a bancarrota. Para isso, sonham com a participação do governo chinês, dono das maiores reservas de moeda forte do mundo, e até mesmo do Brasil, recentemente alçado à posição de 6ª maior economia do mundo.
“Occupy Wall Street” foi a resposta democrata ao movimento republicano “Tea Party”, que varreu os Estados Unidos em 2008/09 logo após os graves problemas econômicos enfrentados pelo governo Obama com a recessão causada principalmente pela especulação financeira e imobiliária. O “Occupy” é um movimento de protesto contra a influência do capital na sociedade e contra a impunidade dos responsáveis pela crise financeira mundial, que atualmente varre todo o hemisfério Norte do planeta.
As manifestações norte-americanas começaram no dia 11 de setembro, data fatídica para os Estados Unidos desde os ataques terroristas de 2001, e ainda continuam a ocorrer, como os protestos realizados nas ruas de Atlanta, Boston, Chicago, Los Angeles, Portland e São Francisco e a paralisação do porto de Oakland, na semana passada.
Do outro lado do Atlântico, também em função dos graves problemas financeiros enfrentados por alguns países do bloco europeu e pelo desemprego que já ameaça a população, as manifestações tomaram as ruas das principais cidades da Europa, como Paris, Roma, Madri, Barcelona, etc. Durante a reunião do G20, realizada nos dias 3 e 4 de novembro, os manifestantes se deslocaram para Cannes, em Nice (França), e transformaram a cidade, famosa pelo seu Festival de Cinema, em palco da luta contra a desigualdade social, a ganância empresarial e o capitalismo como um todo.
Trata-se do acontecimento político mais importante desde os movimentos sociais da década de 60, como a Primavera de Praga (Tchecoslováquia), o Maio de 68 (França) e as lutas contra as ditaduras militares do Cone Sul. Pela primeira vez, desde então, a população de países tão diferentes quanto Estados Unidos, França, Tunísia, Egito e Brasil (na sua luta contra a corrupção endêmica) têm ido às ruas para protestar contra a desigualdade social, a especulação financeira e os valores econômicos que soterraram os valores humanos nas últimas décadas. Mesmos motivos que levaram os jovens a lutar contra a Guerra do Vietnã, pelo “Paz e Amor” e pelo “Flower Power”.
Mais do que ocupações geopolíticas, tais movimentos representam a crise estrutural enfrentada atualmente pelo capitalismo. É a reação da sociedade à insanidade dos mercados e à percepção de que as leis que a regem são, basicamente, a lei dos outros. Dos poucos outros que se beneficiam economicamente da pobreza e da imobilidade de muitos.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Despotismo esclarecido





Hoje começa a primavera e, assim como mudam as estações e o tempo em todo o planeta, mudam também as disposições internas e a temperatura de corpos celestes e terrestres, pessoas aí incluídas. A uma explosão de massas polares e ar muito seco no hemisfério sul se seguirá necessariamente a volta das flores, os dias mais longos, as noites mais quentes, a preparação para a explosão do verão e do ápice da sensualidade que irá preparar para outro tempo de posterior recolhimento e para outras futuras explosões de calor e de alegria.
Alguns povos muito antigos, como os chineses, expressam toda essa alternância em livros milenares, que se caracterizam por ilustrar as mutações a que todo ser vivo está sujeito. Quem aceita as transformações, e encara de frente as dúvidas que as precedem, costuma sofrer menos do que os encastelados em carapaças que, por mais duras que sejam, sempre se quebram, um dia.
Parece que, ao descobrir as leis da física, Newton também antecipou alguns mandamentos da ordem do inconsciente, principalmente aquele que diz que a toda ação, segue-se uma reação. Somos fruto de uma sucessão de atos e acasos. Nada do que se sonha ou do que se deseja vem do nada, e nem vai cair no colo de ninguém sem que muito empenho tenha sido despendido, antes.
É um pouco isso, o verão: a estação em que tudo o que estava em gestação atinge o seu ápice e explode em possibilidades acalentadas previamente. É o tempo da rua, do sol, do discutível horário de verão, da natureza sensual dos corpos bem-cuidados e de todas as possibilidades de alegria acalentadas por quase todo mundo.
Só não se pode acreditar, em meio a toda essa festa erótico-solar que renova as esperanças até mesmo de quem já anda usando o comprimidinho azul, na teoria de que o Homem é um ser bom, o que sempre foi objeto de pesquisa e de discussão entre filósofos de todos os tempos. Bem e mal sempre estiveram na pauta de quase todo pensador, de Heráclito, Platão, Aristóteles e Sócrates a Espinosa, Kant e Nietzsche, que disse que "o homem é criador de valores, mas esquece a sua própria criação". Jean-Jacques Rousseau construiu a teoria do "bom selvagem" e outros iluministas, como Voltaire, construíram suas teorias em resposta ao "despotismo esclarecido" de sua época.
Por trás dos panos, sabemos: o homem não é e nem nunca foi bom. Antes, doma os seus instintos perversos à custa de muito sofrimento psíquico. Como diz Nietzsche em ‘A gaia ciência’, ‘viver é, para nós, constantemente transformar em luz, em chama, tudo aquilo que somos'. Em qualquer latitude ou paralelo, são poucos os que verdadeiramente conseguem. E não há sol de primavera ou calor de verão que seja capaz de esconder a verdade primária de todo sujeito: como afirmou Jacques Lacan, peremptório e sucinto, o homem é "um animal feroz". Jornais e telejornais diários não o deixam mentir.

sábado, 27 de agosto de 2011

O planeta diamante


O nome dele é uma sigla: PSR J1719-1438. O novo pulsar detectado recentemente por pesquisadores australianos é como qualquer outro: uma estrela de nêutrons extremamente densa e que gira muito rapidamente, emitindo pulsos de rádio a intervalos regulares – raiz do seu nome. Astros do tipo giram em torno do seu próprio eixo aproximadamente mais de 10 mil vezes por minuto, e por isso são conhecidos como “pulsares de milissegundos”.
Segundo os pesquisadores da Universidade de Tecnologia Swinburne, na Austrália, e autores do artigo publicado na semana passada na revista “Science”, cerca de 70% dos pulsares de milissegundos conhecidos têm algum tipo de companheiro. Esses companheiros são planetas que têm a importante função de transformar pulsares velhos em pulsares de milissegundos “ao transferirem sua massa e momento para eles, fazendo com que girem cada vez mais rápido. O resultado do sistema é um pulsar com velocidade de rotação extremamente alta com um companheiro encolhido em sua órbita, em geral uma estrela anã branca”.
Para quem quiser conhecer mais detalhes da pesquisa australiana, é preciso saber inglês e acessar o site de uma das mais importantes revistas internacionais dedicadas ao tema (www.sciencemag.org) e publicada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS na sigla em inglês). Para além do interesse científico, porém, a matéria da “Science” traz uma grande novidade: o planeta companheiro do pulsar, que teve todas as suas camadas externas e mais de 99% de sua massa sugadas por ele, transformou-se num planeta de diamante, uma esfera de carbono e oxigênio, de alta densidade e em forma cristalina.
A notícia é mais um fato a comprovar que os poetas são visionários que antevêem coisas que os cientistas só muito posteriormente constatarão. O fato de um planeta ou estrela ter-se transformado, por leis naturais, em companheiro/a de um pulsar, e essa relação dar vida nova a um astro antes moribundo, ocorre também em toda e qualquer relação humana.
O poeta Carlos Drummond de Andrade, que será o homenageado da Festa Literária de Paraty em 2012, escreveu isso em seu poema “Canção Amiga”. Publicado em 1948 no livro “Novos Poemas”, da José Olympio Editores, e musicado por Milton Nascimento no disco “Clube de Esquina 2”, de 1978, o poema de Drummond diz, em seus últimos versos: “Do jeito mais natural, dois carinhos se procuram. Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Aprendi novas palavras, e tornei outras mais belas”.
Uma análise gramatical do poema de Drummond poderia dizer que “Canção Amiga” é um dos textos mais fluentes e mais musicais do poeta de Itabira, escrito em redondilhas maiores, de sete sílabas. Poderia ir além e dizer ainda que, no poema, a tão desejada harmonia da vida é anunciada para além de todas as precariedades do sujeito. Estrofes regulares, de quatro em quatro versos, promovem a interação entre os redondilhos e o coloquial, com intensa expressividade.
Quanto a mim, prefiro a alegria de saber que lá fora, na imensidão negra e infinita, os astros também estão submetidos às mesmas leis de atração e repulsão às quais somos submetidos no planeta azul. Que, para além de toda solidão, também precisam de um outro para sentir-se rejuvenescido e para encontrar novas razões para a sua pulsão. E que disso podem resultar pérolas. Ou diamantes por lapidar.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Fome



Adriana B. Leite e Santos

Pessoas adoram consolos de todos os tipos. Colinhos, compreensões várias, palavrinhas de estímulo ou de auto-ajuda, vibradores, divãs e confessionários onde aplacar a culpa pela própria miséria. A corrida ao tesouro atual inclui a busca pela tal da "felicidade", especialmente em forma de corrida à fonte da juventude que, como reza a lenda, permitiria que a vida fosse eternizada no auge do vigor físico da espécime.
Nunca conheci ninguém de idade a quem o eufemismo “feliz idade” pode ser aplicado. Todos já entrados nos anos questionam ou questionavam, entre outras coisas, a perda de agilidade e de viço, a pressão arterial, o colesterol e as rugas, além das flatulências. Ainda que a pessoa não seja de muitas reclamações, são indiscutíveis as limitações que a idade impõe a cada um. Em todos, porém, o tal consolo: a agilidade mental e a sagacidade da idade supera, em muito, as deficiências físicas naturais do passar do tempo. O que mantém alguém de pé, por outro lado, não é nada disso, e sim a capacidade de ainda desejar coisas, independente da idade, e de tentar viver cada dia com a plenitude possível.
Nunca basta muito ou pouco para ser feliz. Simplesmente a tal felicidade é um conceito abstrato demais num mundo sustentado por signos e subjetividades. Conceber-se feliz num mundo onde milhares de crianças morrem de fome - na Somália, no Djibuti, no Quênia ou no Brasil - é a mais absoluta prova de que A felicidade é impossível neste mundo. Instantes de felicidade, no entanto, são plenamente possíveis, e tornam a vida mesma mais suportável; e alongam a vista para além do ceticismo que tudo resseca e desestimula.
Paixões costumam permitir tal experiência de felicidade quando é correspondida. Amor por filho também. Mas não se pode dizer o mesmo do amor entre duas pessoas, que – como disse o poetinha – só é bom se doer. E dói, mais cedo ou mais tarde. Desde que não vire o conformismo acomodado dos casais sem muito assunto, ou a mentira mal disfarçada dos traidores compulsivos, amor dói, especialmente quando deixa de ser colo e passa a ser pé no chão ressequido e reconhecimento da fome que nunca cessa.
Fome, fomes. Os Titãs acertaram na mosca quando perguntaram, numa de suas canções, "Você tem fome de que?". Grana? Forma física invejável? Ascensão social? Poder? Justiça social? Justiça pessoal?
Pois as crianças indígenas brasileiras têm fome de comida mesmo, assim como as crianças africanas que estão morrendo aos milhares por falta absoluta do que comer. Enquanto a gente finge que é cidadão, indo votar nos inescrupulosos de dois em dois anos, e eles fingem que são diferentes uns dos outros durante as famigeradas e caras campanhas eleitorais, as crianças do Brasil estão morrendo de fome ou vendendo seus corpos aos marmanjos safados porque a corrupção generalizada que corrói o país, como as antigas saúvas, não deixa as verbas federais chegarem a quem realmente precisa.
Do outro lado do Atlântico, as crianças africanas do chamado Chifre da África também estão morrendo de fome na Somália, no Quênia, na Etiópia e no Djibuti. É o testemunho fúnebre da combinação de tragédia climática, alta inescrupulosa do preço dos alimentos e conflito armado, além de indiferença mundial. Einstein obviamente tinha razão: a estupidez humana é mesmo infinita.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Amy e as uvas podres


Adriana B. Leite e Santos

Não falarei do massacre que matou 76 na Noruega, da derrocada econômica dos Estados Unidos e da Europa, do escândalo dos grampos e do fechamento do "News of the World (NoW)" no Reino Unido, do passaralho no Dnit/Ministério dos Transportes e nem mesmo do novo cd de Chico Buarque, lindo disco cheio de músicas para apaixonados e sensíveis - no fundo, a mesma coisa. Algo talvez ainda mais grave aconteceu: Amy Winehouse morreu.
Depois da dor pela perda irreparável para o mundo da boa música, muita gente começou a fazer uma listinha dos que morreram aos 27 anos como ela: Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, Brian Jones, etc. A lista é grande e inclui muito sexo, drogas e rock’n’roll do bom. Pelas redes sociais, especialmente no Facebook, começou a rolar até mesmo uma piadinha com nome de gente como Luan Santana, afirmando que, se existe mesmo a tal ‘maldição dos 27’, ainda se teria de esperar mais 7 anos para se livrar do bonitinho. Infame.
É fato que a turma da pesada aí de cima sucumbiu com essa idade. Mas cada macaco no seu galho. Todos eles foram frutos de sua geração, época da revolução em Cuba, da guerra do Vietnã, do Watergate e da plena vigência da Guerra Fria entre as duas grandes potências econômicas de então, os Estados Unidos e a União Soviética. Repressão e confusão da braba, que gerou atitudes tão radicais quanto.
Além disso, houve o ‘liberou geral’ do sexo com o surgimento da pílula. Ato falho: óbvio que falo da anticoncepcional, mas já ia escrevendo ‘pílula falante’, como em Monteiro Lobato. Talvez faça todo sentido, já que o fato de ser dona do próprio corpo, para muito além e aquém do nariz, deu à mulher a autonomia até então inexistente sobre o próprio discurso.
Amy Winehouse, ao contrário, não contestava nada. Nem mesmo teve forças ou tempo para buscar ajuda para o seu mal-estar. A sua ‘dor e delícia’ de ser o que era só podia ser suportada sob quantidades industriais de drogas variadas porque ela sofria de uma solidão evidente, tudo isso aos 20 anos e sob os holofotes da mídia e dos fãs implacáveis. E é óbvio que se pode dizer que sofria muito, apesar de ter, ao que consta, uma família presente ,um pai amoroso e uma conta bancária invejável.
A estrutura psíquica de todo sujeito, segundo a psicanálise, é construída sobre uma cadeia deslizante de significação, onde o sentido é ‘montado’ sobre uma base de experiências que incluem o aprendizado da linguagem e as experiências ‘sexuais’ infantis - pois, como demonstrou Freud, elas existem, sim, na infância. E para Amy, algo dessa cadeia era falho, muito mais do que para os neuróticos habituais.
É claro que quem consome aquela quantidade de birita, cocaína, heroína, tranqüilizantes e sabe-se lá mais o quê não consegue suportar a vida - ou a dor da vida - sem esses recursos. E é o mesmo que só conseguir dormir com remédios, de só conseguir trabalhar depois de muito Red Bull ou de só curtir a noite com ‘bala‘ e otras cositas. É o mesmo que ser fervorosamente religioso ou praticar ioga para se apaziguar. Freud apontou isso em 1930, em ‘O mal-estar na civilização’.
“A perversão escancara a paixão humana no que o homem tem de divisão dentro dele mesmo e que estrutura o imaginário, que é a relação especular. Nesse hiato, o desejo humano está inteiro exposto ao desejo do outro. E o desejo perverso se suporta do ideal de um objeto inanimado“. A perversão parasita que sempre ronda a fama e o sucesso finalmente conseguiu o seu objetivo. Amy, objeto da perversão do Outro, está morta. Freud e Lacan explicam.

domingo, 24 de julho de 2011

Em carne viva


Adriana Bacellar


Que diferença faria agora, tomar cicuta ou se jogar na frente de um trem, se quem sai sempre deixa a porta aberta, o vento uivando nas frestas e os dicionários calados, sem nenhuma explicação a dar?
Doeria menos que o nó na garganta que não deixa o ar passar e que sufoca os soluços engolidos junto com o uísque barato, que mal disfarça a vontade de se juntar à poeira que sobe das ruas abandonadas. Ou vontade de evaporar feito a fumaça dos cigarros, dos beijos e das juras eternizadas em papéis de seda, que queimam todos juntos nas explosões das guerras inevitáveis.
Para além de mim, para além de nós, talvez, brotam perguntas que afogam a cidadela nua dos corpos nus e inconscientes que habitam as madrugadas violentas e frias. E melancólicas como o espaço sem fronteiras que existe entre dois corações partidos. Ou como os mortos enterrados que dormem sob a chuva, sem chance de semear coisa alguma, senão vermes.
As palavras são vestes pobres, porém os únicos trapos de que dispomos como sujeitos que supõem saber. Mesmo assim, não bastam. Não nos contentamos com a pobreza da coisa dita. Tampouco aceitamos a pobreza do sentido possível. Rotos e miseráveis, nos lançamos à vida e à sua invenção rotineira como quixotes que lutam contra os moinhos da produção de senso e sentido.
Pobres fantasmas vagando entre neblina pesada. Pescadores incrédulos à espera do milagre dos peixes. É hora da flecha no coração: somos inventores de sentidos, de leis e de deuses que desrespeitamos. Somos os reis das desculpas esfarrapadas. Somos imbatíveis em fazer barulhos irritantes. Limitamos a beleza dos sussurros às capelas imponentes onde entramos tão esfarrapados como o suposto Humilde a quem se pede perdão de todos os pecados, mas cuja palavra para sempre julga e condena.
Cada um conhece bem o dicionário das próprias trapaças e traições. Mas as suas causas para sempre serão objetos arqueológicos, enterrados sob gerações de inconsciência e recalques.
E hoje, como um sádico marquês, quero botar o dedo na ferida, e quero gozar disso, da podridão ambulante em que transformamos o que poderia ser beleza, se dignificado à altura de nossas possibilidades. Mas, como ratos, preferimos as fossas às estrelas. Todos correm atrás de umas poucas hóstias que abençoem toda mentira, luxúria e ganância. Milhares de Dorian Gray colocando Botox aos quilos e fazendo a fortuna das academias, enquanto seus retratos reveladores apodrecem junto com a sobra que servimos aos serviçais.
Pensando navegar veleiros, singramos barcos de papel. E, mal colonizados por nós mesmos, continuamos trocando nossas maiores possibilidades de riqueza por miçangas e espelhinhos, por esmolinhas de atenção, já que a vaidade podre que nos sustenta se contenta com caquinhos de verdade, de dignidade e de autoestima.
Toda letra e todo ser é um hieróglifo atraente, mas os tratamos como velhas beatas, fingindo intimidade com o sagrado para disfarçar a pouca fé. Falamos qualquer coisa, descontroladamente, para apresentar alguma justificativa para sermos assim, tão tolos e cegos e maltrapilhos. Tagarelamos em vão para disfarçar o vômito incontinenti que mal seguramos após tão malfadadas travessias. Vindos do nada em direção a coisa nenhuma.


(Picture: Francis Bacon)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O delicado humano


Adriana Bacellar


Os carros passam sobre as ruas esburacadas, apressados, correndo para encontrar não se sabe o que. Nas ruas, vê-se o deserto desenvolvimentista que corta todas as árvores e expõe a sua falta de planejamento. Faz muito frio do lado de fora, muito frio trazido pelos ventos antárticos do inverno tropical, que surpreende os subdesenvolvidos, emergentes e pobres, do sudeste maravilha.
Sudeste maravilha atolado em violência social. Onde a remuneração de quem realmente trabalha é submetida aos caprichos políticos dos que se elegem usando a grana desviada. Argentina e Brasil andam decepcionando no futebol masculino, a seleção de vôlei persegue o 10º título mundial, Marta e companhia dão piruetas para comemorar os gols na Copa do Mundo de Futebol feminino e a gente assiste a tudo pelos meios de comunicação que mais isolam do que agregam.
Incansáveis vezes cantarola-se a música de Caetano: quem lê tanta notícia? Chico Buarque também canta: a dor da gente não sai no jornal. Jornaizinhos nossos de cada dia, trazendo tanta desgraça, ironia e arrogância. Tanta gente despreparada e inculta querendo publicar mais por vaidade do que por vocação.
O mundo, quando o olhamos sem ajustar o foco, é um mosaico em preto e branco de ignomínias e falta de senso. O que o colore é o toque pessoal de sonho e loucura, a dose de interpretação pessoal. Por aí, entendo a necessidade da religião: apazigua o animal feroz e voraz de cada um em prol de um coletivo um pouco mais delicado e humano.
E o que é ‘humano’? Nos intitulamos ‘seres humanos’ e, no entanto, mal sabemos o seu significado. Humanitário é o que visa o bem-estar da humanidade. Humanismo é a atitude que visa ao antropocentrismo, o homem no centro de tudo. É também a doutrina dos renascentistas (século XV) a favor do culto das línguas e das literaturas greco-latinas. Humano é bondoso e humanitário. É?
Uma das tiradas mais famosas de Nelson Rodrigues diz que brasileiro só é solidário no câncer. Na desgraça também lembramos de pedir socorro aos deuses que criamos para nos defender dos infortúnios da vida. E eles acontecem, pode crer. A atitude que você oferece diante de qualquer fato ou pessoa é exatamente aquela que você terá de qualquer fato ou pessoa. Dois mais dois são quatro, mas também sabem ser cinco, às vezes. Como também numa velha canção.
Milagres são a música, a capacidade de se estruturar sobre uma linguagem, a capacidade de juntar fonemas e sentido e achar que é tudo sólido, quando a ciência já demonstrou há tempos que tudo que é sólido desmancha no ar, existem espaços vazios entre as moléculas, o sentido é sempre deslizante, nada “é” de forma categórica e definitiva, e a única certeza é morrer.
A certeza da morte é que dá a perspectiva de humanidade ao bicho que pensa que virou gente. Homo sapiens que nada sabe. Mas alguns seguem atuando como se imortais fossem, ou ao menos expondo toda a sua pretensão de sê-lo. Seria cômico, não fosse trágico e matasse tanta gente de peste, guerra ou fome. Chega de indulgência com tamanha ignorância.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Cobras, livros e lagartos


Adriana Bacellar

A Folha de S. Paulo publicou, outro dia, a fotografia de uma cobra de duas cabeças. Trata-se do segundo caso assim registrado no mundo e a cobra, uma piton de 50 centímetros, é de um criador de répteis que vive na Alemanha. A Alemanha é um país curioso: nos deu Wagner, Beethoven, Brahms e sobretudo Bach; Goethe, Thomas Mann, Karl Marx, Lou Andreas-Salomé, Nietzsche, Hermann Hesse e Heidegger. Timaço para ninguém botar defeito. Mas também pariu Hitler, Goëring, Goebbels e o holocausto, o que basta para evidenciar um certo traço esquizóide do país que, inclusive, já esteve mesmo dividido em dois durante a Guerra Fria (informe-se).
Pensei na hora em Hilda Hilst, grandíssima escritora, poeta, dramaturga e cronista brasileira que nasceu em 1930 e morreu em 2004 e que, inclusive, era quem escrevia esse tal “informe-se” nas suas crônicas. Grandíssima escritora, enorme escritora, indispensável mesmo. Como ando lendo seus “Cascos & carícias & outras crônicas” (editora Globo, 2001), juntei a notícia da cobra com os textos do livro e imediatamente comecei uma crônica que dizia “muito marmanjo por aí já deve estar se revirando de inveja”.
Cobra de duas cabeças? Era só o que faltava! Os acionistas do grupo Pão de Açúcar querem comprar o Carrefour, mas é a gente que vai entrar com os R$ 4 bilhões para viabilizar a transação, via BNDES. Ainda não sei onde estão as minhas ações desse banco público brasileiro que gosta de financiar ganhos privados, mas hei de encontrá-las. Afinal, é da maior rede de supermercados do país que estamos falando, e a grande amizade que liga Abílio Diniz a Lula deve bastar como garantia do negócio.
O que é a palavra num país de semi-analfabetos... Políticos, por exemplo, adoram falar em “ética”, mas desconfia-se que não tenham a menor noção do que realmente trata o vocábulo.
Exemplos a rodo, difícil escolher! Depois de passear de jatinho Legacy e similares para a Europa, na época da escolha da sede das Olimpíadas 2016, e para Trancoso, Bahia, mês passado, agora o governador do Rio pretende criar um código de ética para o próprio cargo. Tudo porque o helicóptero que o levou para a festa de aniversário de um outro empresário (que tem mais de R$ 1 bilhão em contratos com o Estado do Rio) caiu mês passado, matando boa parte da família do tal nababo, e só por isso os jornais fuçaram a história e descobriram as ‘facilidades’ proporcionadas por super-empresários ao atual ocupante da maior cadeira do Palácio Guanabara.
Já na terra da garoa, a prefeitura pretende torrar R$ 420 milhões em incentivos fiscais ao Corinthians e à Odebrecht para a construção do estádio de futebol do time. Vejam bem, trata-se de uma prefeitura injetando dinheiro público numa obra que irá beneficiar a maior empreiteira do país e um clube privado: dinheiro público financiando, de novo, ganhos privados.
As incongruências, os absurdos, a selvageria, a estupidez, o imponderável e o caos que nos rodeia tratam tudo isso como muito natural. Roubam bilhões, trilhões até, mas se algum pobre coitado rouba um desodorante ou um shampoo no mercado, correm atrás dele até expô-lo aos jornalecos de província e enfiá-lo atrás das grades. O que tem a cobra de duas cabeças com tudo isso? Interpretações ao gosto do freguês. Minha conexão foi pela via do absurdo, mas garanto que já estão pensando besteira. Pornografia é aceitar calado os absurdos desse mundo.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Meia-noite em Paris


Adriana Bacellar

Conheço bem a Europa, mas ainda não fui a Paris. Certa vez, sonhei que morava lá. Lembro-me de ver, de meu imaginário atelier parisiense, o telhado dos outros prédios e algumas de suas fachadas a perder de vista, como uma panorâmica cinematográfica cuja tomada terminasse na Torre Eifel. Como todos os meus outros sonhos, tenho certeza de que isso ainda vai se realizar, se eu quiser, e talvez por isso adie a primeira vez na Cidade Luz, uma vez que, quando a conhecer, irei para ficar algum tempo.
Além de ser material do inconsciente e, portanto, realização de desejos, os sonhos são agora o mote do mais recente filme do diretor nova-iorquino Woody Allen, um dos grandes cineastas do cinema mundial de todos os tempos. “Meia-noite em Paris” não é o primeiro filme de Woody Allen a causar emoções e reflexões profundas na platéia. “Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar”; “Sonhos eróticos numa noite de verão”; “Noivo neurótico, noiva nervosa”; “Manhattan”; “Zelig”; “A rosa púrpura do Cairo”; “Hannah e suas irmãs”; “A era do rádio”; “Um misterioso assassinato em Manhattan”; “Match point” e “Vicky Cristina Barcelona” são alguns dos outros filmes dirigidos por ele que lhe renderam várias indicações a Oscar, Globo de Ouro, Palma de Ouro de Cannes, Urso de Prata de Berlim e a outros prêmios prestigiosos do cinema.
Mas “Meia-noite em Paris” faz mais do que contar de forma brilhante um ótimo roteiro: faz rir, faz chorar e faz sonhar a partir de outro sonho, este de sua personagem principal, Gil: o de tornar-se um bom escritor residente em Paris. O filme é estrelado por Owen Wilson no papel principal e Rachel McAdams, mas tem a participação de grandes atores como Marion Cotillard, Kathy Bathes, Adrien Brody, Corey Stoll e Tom Hiddleston, entre vários outros.
O enredo conta a história de Gil (Owen Wilson), um roteirista de Hollywood que sempre idolatrou os grandes escritores americanos e quer ser como eles. Seu trabalho em Los Angeles faz com que Gil seja muito bem remunerado, mas também lhe rendeu uma boa dose de frustração. Agora ele está em Paris ao lado de sua noiva, Inez, e dos pais dela, Mimi e John. O pai de sua noiva está na cidade para fechar um grande negócio e não se preocupa nem um pouco em esconder sua desaprovação pelo futuro genro.
Estar em Paris, uma cidade linda e que abrigou, em todas as épocas, tantos escritores e artistas consagrados, faz com que Gil volte a se questionar sobre os rumos de sua vida, desencadeando o velho sonho de se tornar um escritor reconhecido. Mergulhando nesse questionamento, ele ‘encontra’ na cidade alguns dos principais artistas que mais admira, como Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, T.S.Elliot, Cole Porter, Luis Buñuel, Pablo Picasso, Gertrude Stein, Alice B. Toklas, Man Ray, Josephine Baker, Edgar Degas, Toulouse-Lautrec, Matisse e Paul Gauguin, dentre outros.
Além de uma ode de amor à cidade, “Meia-noite em Paris” é um sopro de vida para todos os que acalentam sonhos e têm talento para realizá-los. Além disso, a película toca na ferida da nostalgia e da mortalidade humanas, ressaltando a idéia, através da belíssima Paris, que a vida é sempre aqui e agora, por mais referências do passado que se carregue. Um dos melhores filmes que já assisti em minha longa carreira de cinéfila. Simplesmente imperdível.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Sem medo de ser feliz


Adriana Bacellar

Enquanto a natureza vai me presenteando com diferentes espécies de orquídeas, em casa, e com aroeiras em flor por toda a cidade, os jornais trazem as notícias que, mais do que indignação, causam agora um misto de ironia e escárnio. Na madrugada do dia da aprovação, na Câmara dos Deputados, do tal novo Código Florestal (que libera mais alguns acres aos madeireiros), um casal de ambientalistas e defensores da floresta foi assassinado no Pará como que para comemorar o feito de Brasília.
O casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva havia denunciado a ação de madeireiros perto do Assentamento Agroextrativista Praialta Piranheira, onde morava. Ambos eram ameaçados há tempos, mas não figuravam em nenhuma lista oficial de possíveis candidatos a receber segurança da Polícia Federal ou de quem quer que seja. Foram, como Chico Mendes e Dorothy Stang, deixados ao “deus-dará”, e terminaram como os outros dois, assassinados.
Poucos dias antes, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou dados que apontaram para o aumento de 27% do desmate da Amazônia nos últimos meses. Divulgados agora, os dados são de agosto de 2010 a abril, em comparação com o mesmo período do ano anterior. Ainda mais alarmante foi a constatação de que houve um crescimento anormal da derrubada da floresta nos últimos dois meses, exatamente quando a discussão sobre reformas no Código Florestal brasileiro esquentou: entre março e abril deste ano, a destruição da Amazônia cresceu 473% (!) em relação ao mesmo período do ano passado.
A presidente da República, envolvida com uma pneumonia dupla, não deu um pio sequer sobre o assunto. Também não disse absolutamente nada sobre as atividades suspeitas do seu ministro da Casa Civil à frente da empresa Projeto durante o seu (dele) mandato de deputado federal. De 2006 a 2010, paralelamente às suas atividades de deputado federal, Palocci aparentemente intercedeu por diversas empresas que, imediatamente após contribuírem para a campanha da então favorita das pesquisas ao Planalto, tiveram liberadas expressivas somas de Imposto de Renda retido.
Houve mais: durante a transição do governo Lula para o governo Dilma, apenas nos últimos meses de 2010, a Projeto de Palocci multiplicou seu patrimônio por 20, mais da metade após a eleição de Dilma Rousseff. Não satisfeita, no começo de 2011 a Projeto adquiriu dois apartamentões em São Paulo, um de 6,6 milhões e um escritório de 882 mil reais, sendo que ninguém sabe ao certo o que faz e para quem trabalha a sua empresa.
No meio de todo o escândalo, a Folha de S. Paulo, responsável pelos furos, apurou também que a Caixa Econômica Federal relatou à Justiça que o responsável pelo vazamento dos dados bancários do caseiro Francenildo Costa foi mesmo o gabinete do ministro Antonio Palocci, na época na Fazenda. Tudo porque o processo está em andamento e o banco foi condenado em 1ª instância a indenizar Francenildo em R$ 500 mil reais pela quebra do sigilo bancário. A Caixa informou à 4ª Vara Federal de Brasília que cabia a Palocci o resguardo das informações que recebera do banco, na época do escândalo da Casa do Lobby.
Para não dizer que não fez nada, o governo federal suspendeu a distribuição do chamado “kit anti-homofobia” para apaziguar a bancada religiosa e para que Palocci, em revanche, não fosse convocado pelo Congresso a prestar esclarecimentos oficiais em Comissões e CPIs. Hoje sei que a frase do velho jingle petista, ‘sem medo de ser feliz’, queria dizer sem medo de se locupletar. Medo pra que, se somos mansos cordeirinhos?

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Sedução e espanto


Adriana Bacellar

A página em branco me encara, e a encaro de volta, sedução antiga mas ainda motivadora, como um amor verdadeiro. Dias tão ensolarados não convidam à introspecção ou ao trabalho duro, pelo contrário: fazem querer ir para as ruas ou recolher-se aos meros devaneios, mesmo no outono. Ou sobretudo no outono de dias tépidos e noites frias, convites explícitos ao recolhimento, ao aconchego e a tudo o que se pode sonhar fazer com outra pessoa que nos deseje ao menos em parte como sonhamos ser desejados.
A página em branco me encara, mais profundamente ainda às sexta-feiras, “sexta-feira, mais intensa que qualquer outro dia por ser véspera de tudo, embora o tudo resulte em nada, na segunda”, aspas tiradas de Caio Fernando Abreu.
Me encara, a página em branco. E como amor verdadeiro, a sedução que se renova é atração irrefreável, fascínio, tentação de resolver o enigma antes que a esfinge me coma. Como pedem as placas incansáveis, não mais alimentarei os animais, a não ser a mim mesma. Homo homini lupus: o homem é o lobo do homem, a fome é grande e ‘o meu angu primeiro’.
Sigo evitando, fingindo não vê-la, mas olhando de soslaio, usando armas antigas, expressões pouco conhecidas, me afastando do que sugerem os manuais, odeio manuais na proporção inversa em que adoro dicionários, tentativas de tradução para tudo o que não encontra outra saída além das palavras: fendas, faltas, fomes... Sonhos são eles próprios traduções, expressões de desejo que vazam, poluções noturnas, chistes, atos falhos, tudo o que é involuntário e pulsa, pulsa, pulsa – ainda e sempre.
A encaro de volta, a página em branco. Olho e não vejo nada além de mim mesma, nada além de perguntas, nada além do mesmo espelho que me desafiava na infância e que desafia vida afora, espelho, espelho meu, o mundo inteiro reduzido a olhos tão pequeninos, fábulas, óculos, vidraças e cortinas como que a refratar o medo ou a disfarçar intensidades pouco nobres entre mim e o meu desejo.
A página em branco me encara: espelho, espelho meu, existe alguém mais adjetiva do que eu? Sim, nobre rainha, a branca de neve, a gisele bündchen, qualquer outra mulher do mundo – mas não nesse momento em que a página em branco me encara e geralmente vejo o que nunca havia visto antes, por ser sempre novo desafio, uma nova página em branco, nova pergunta, nova tentativa, nova ins-piração.
Olho em volta e não vejo nada. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, Marx também tinha poesia e sabia alguma física, espaço entre átomos em constante atração e repulsa, os vãos de que somos formados, o oco sobre o qual tentamos construir uma vida inteira, tudo cabendo, nada sendo norma definida, tudo sendo lei e convenção. E lei dos mais fortes, alegrias travestidas – negros sofrimento e solidão.
Prefiro o desafio da página em branco: olhar para mim mesma, todos os dias, entre sedução e espanto.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O 'status quo' não morreu


Adriana Bacellar

Teve uma época em que era moda usar a expressão Statu quo. Ela andava pela boca de todo mundo, os do contra e os a favor. Foi ali pelo final dos anos 60 e até os anos 80, período exato em que vigorou a ditadura militar no Brasil e no qual o pessoal começou a conhecer Spinoza, Delleuze, Marx, Marcuse, Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer e outros.
Trata-se de uma expressão latina que designa “o estado atual das coisas, seja em que momento for”. Ou seja, durante a ditadura, manifestavam-se contra o Status quo todos os que lutavam contra a ditadura militar, de alguma forma. Já os que dela se beneficiavam, eram a favor da manutenção do Status quo, ou das coisas como elas estavam. Como se sabe, não foram poucos os que se aproveitaram dos anos de chumbo para obter informações preciosas e para enriquecer com a manutenção de monopólios os mais variados, de concessões de canais de rádio e televisão até a obtenção do mapa dos recursos naturais brasileiros, em solo ou no sub-solo. Isso para citar apenas os que enriqueceram com atividades consideradas lícitas.
Depois de tanta luta contra a caretice e de encerrado o período em que a censura ditava as regras no Brasil (1964-1985), fato é que a luta pelo e contra o tal do Status quo ganhou novas formas e novas tonalidades, já que a sua manutenção também adquiriu novos contornos. Se antes era o capital estrangeiro, a Rede Globo e o pagamento de juros ao Fundo Monetário Internacional (FMI) que encarnavam o que de pior o Status quo pudesse representar, hoje em dia essa incorporação se dá de forma mais tênue, uma vez que praticamente todo mundo sonha em levar as crianças para passar férias no Disneyworld, em ter um carrão importado e em vestir grifes como se fossem manequins de vitrine.
No reino da breguice dourada e fake da sociedade do espetáculo insuportável das celebridades, o que melhor parece encarnar o Status quo do terceiro milênio é a aquisição dos dispositivos eletrônicos de última geração. Qualquer burguês de hoje (sim, eles também ainda existem!) tem orgulho inaudito em tirar da bolsa de grife falsa adquirida na 25 de Março o seu modelo de smartphone, seus Palms, seu iPad, seu netbook ou seu iPod. E, cúmulo dos cúmulos, gozam ao portar na traseira dos seus automóveis o adesivo com a logomarca da Apple, símbolo supremo do atual alpinismo social.
O Status quo também se presentifica no orgulho emburrecido dos evangélicos ao defenderem os pastores que subtraem os seus pertencem com pureza incomparável e que fornicam a rodo, enquanto os fiéis comentam à boca pequena. E enquanto garotinhos e garotões não perdem uma boquinha para exibir suas cascas envernizadas por falsos brilhantes e pela moral duvidosa dos preceitos que precisam defender para sobreviver e, assim, disfarçar as suas idiotias, o Supremo Tribunal Federal do Brasil vai dando aula de civilidade e de inteligência na apreciação das mais recentes matérias, como na legalização da união homoafetiva e da negação de recurso aos réus do ‘mensalão’. Ambas as sessões foram aulas magnas contra o Status quo brasileiro que prega a virtude da aparência ante a essência.
Não sei não... Acho que estou me apaixonando pelo Supremo.

O status quo não morreu


Adriana Bacellar

Teve uma época em que era moda usar a expressão Statu quo. Ela andava pela boca de todo mundo, os do contra e os a favor. Foi ali pelo final dos anos 60 e até os anos 80, período exato em que vigorou a ditadura militar no Brasil e no qual o pessoal começou a conhecer Spinoza, Delleuze, Marx, Marcuse, Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer e outros.
Trata-se de uma expressão latina que designa “o estado atual das coisas, seja em que momento for”. Ou seja, durante a ditadura, manifestavam-se contra o Status quo todos os que lutavam contra a ditadura militar, de alguma forma. Já os que dela se beneficiavam, eram a favor da manutenção do Status quo, ou das coisas como elas estavam. Como se sabe, não foram poucos os que se aproveitaram dos anos de chumbo para obter informações preciosas e para enriquecer com a manutenção de monopólios os mais variados, de concessões de canais de rádio e televisão até a obtenção do mapa dos recursos naturais brasileiros, em solo ou no sub-solo. Isso para citar apenas os que enriqueceram com atividades consideradas lícitas.
Depois de tanta luta contra a caretice e de encerrado o período em que a censura ditava as regras no Brasil (1964-1985), fato é que a luta pelo e contra o tal do Status quo ganhou novas formas e novas tonalidades, já que a sua manutenção também adquiriu novos contornos. Se antes era o capital estrangeiro, a Rede Globo e o pagamento de juros ao Fundo Monetário Internacional (FMI) que encarnavam o que de pior o Status quo pudesse representar, hoje em dia essa incorporação se dá de forma mais tênue, uma vez que praticamente todo mundo sonha em levar as crianças para passar férias no Disneyworld, em ter um carrão importado e em vestir grifes como se fossem manequins de vitrine.
No reino da breguice dourada e fake da sociedade do espetáculo insuportável das celebridades, o que melhor parece encarnar o Status quo do terceiro milênio é a aquisição dos dispositivos eletrônicos de última geração. Qualquer burguês de hoje (sim, eles também ainda existem!) tem orgulho inaudito em tirar da bolsa de grife falsa adquirida na 25 de Março o seu modelo de smartphone, seus Palms, seu iPad, seu netbook ou seu iPod. E, cúmulo dos cúmulos, gozam ao portar na traseira dos seus automóveis o adesivo com a logomarca da Apple, símbolo supremo do atual alpinismo social.
O Status quo também se presentifica no orgulho emburrecido dos evangélicos ao defenderem os pastores que subtraem os seus pertencem com pureza incomparável e que fornicam a rodo, enquanto os fiéis comentam à boca pequena. E enquanto garotinhos e garotões não perdem uma boquinha para exibir suas cascas envernizadas por falsos brilhantes e pela moral duvidosa dos preceitos que precisam defender para sobreviver e, assim, disfarçar as suas idiotias, o Supremo Tribunal Federal do Brasil vai dando aula de civilidade e de inteligência na apreciação das mais recentes matérias, como na legalização da união homoafetiva e da negação de recurso aos réus do ‘mensalão’. Ambas as sessões foram aulas magnas contra o Status quo brasileiro que prega a virtude da aparência ante a essência.
Não sei não... Acho que estou me apaixonando pelo Supremo.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Abbottabad é aqui




Adriana Bacellar

A essa altura, todo mundo já tomou conhecimento do nome da cidade paquistanesa onde o governo norte-americano matou o terrorista Osama bin Laden no começo deste mês, Abbottabad - cidade de Abbott, um inglês que andou por lá, há muito tempo. Aos poucos, as primeiras versões apresentadas pelo governo de Barack Obama vão sendo contestadas por outros governos e por organismos internacionais, como a ONU, e o que resta é um monte de perguntas e de elucubrações que só servem mesmo à manutenção da desinformação a respeito do que realmente aconteceu.
Osama era amigo do governo hoje encarnado por Obama, e trabalhou pelos aliados na guerra do Afeganistão, décadas atrás. Depois, foi descartado e pulou para o lado do ódio aos yankees, como que para se vingar de quem comeu no seu prato e mais tarde passou a cuspi-lo. A cada nova edição matutina dos jornais mundiais, ficamos sabendo de mais detalhes, todos contraditórios, da ‘Operação Geronimo’ - aliás, um desrespeito ao índio norte-americano que encarnou a brava luta contra o extermínio de seu povo durante a ocupação inglesa em terras americanas.
Ninguém viu corpo, nenhum mulá foi chamado a tratar do cadáver (como reza a tradição islâmica), nenhuma foto foi divulgada e o governo dos Estados Unidos quer nos fazer crer que o mundo é hoje um lugar melhor para se viver em virtude dessa ‘notícia’ que mais parece ter saído da chamada imprensa marrom, por desrespeitar todos os princípios básicos do bom jornalismo.
Uma vez mais, para quem tem o maior arsenal bélico do mundo, tudo é possível. A dica para o rastreamento dos dois mensageiros que trabalhavam para Osama bin Laden teria sido obtida em sessões de tortura na prisão de Guantánamo, enclave norte-americano em plena ilha de Cuba e para onde os EUA enviam os seus presos de guerra e outros de grosso calibre. E tortura é uma das especialidades dos combatentes norte-americanos, como também é de conhecimento público por aqui desde a famigerada ‘Operação Condor’ dos anos 1970. Na época, oficiais norte-americanos treinaram e exportaram sangue e porrada para oficiais da linha dura do Cone Sul, que estavam à frente das ditaduras militares em vários países da América Latina, incluindo o Brasil.
Dois dias antes da notícia da morte de Osama bin Laden, o episódio da explosão da bomba no Riocentro fez 30 anos, no dia 30 de abril. Naquela noite de 1981, cerca de 20 mil brasileiros se encontravam no local para festejar o Dia do Trabalho num show com os principais artistas da MPB, como Chico Buarque, Gonzaguinha, Gonzagão e tantos outros. Todas as portas de saída de segurança do Riocentro estavam trancadas, mais duas bombas foram achadas atrás do palco e outra ainda também foi vista por testemunhas dentro do Puma explodido por obra certamente divina, matando um militar que a manipulava e deixando seu cúmplice no atentado frustrado gravemente ferido.
Como que para coroar todo o ‘revival’ da história política recente do Brasil, está no ar no SBT a novela “Amor e revolução”, que encena os principais fatos dos chamados anos de chumbo da ditadura brasileira. Como de praxe, um abaixo-assinado de milicos da reserva e da ativa tentou intimidar o canal de televisão para que suspendesse a novela, sob a alegação de que abriria de novo velhas feridas. Felizmente, foi rapidamente abafado pela cúpula do Ministério da Defesa, para o bem da recente democratização brasileira.
Talvez nunca saibamos integralmente como Osama foi morto, mas os métodos divulgados de sua execução condizem com o ‘modus operandi’ da maior potência econômica da Terra. Certamente ele foi um terrorista sangrento, mas não mais do que quem exporta não somente tecnologia de ponta em todas as áreas do mercado e da educação, como também práticas escusas e condenáveis de atuação militar ao redor do mundo.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Mapa do tesouro





Adriana B. Leite e Santos

Notícias, notícias e mais notícias. Como em “Alegria, alegria”, de Caetano, quem lê tanta notícia? Secretaria de Segurança do Estado fez operação conjunta na cidade, depois de vários assassinatos, inclusive na Zona Sul. Obama visitou o Brasil com a família, estreitando laços com o país depois da política externa duvidosa do governo Lula. Radiação se espalha pelo Japão depois do terremoto seguido de tsunami. Apple lançou o iPad 2, agora com câmeras. iTunes posta aplicativo que promete a cura gay, causando uma petição on-line, assinada por mais de 100 mil, para a sua retirada.
Cura gay? Bem, se até religião promete a cura gay e se o presidente do Irã diz que não há homossexuais em seu país, tem gente que deve acreditar. Mas pode o sujeito se curar daquilo que o define? Como assim? Em termos muito leigos, a aquisição da linguagem pelos humanos vem no rastro do desmame e da descoberta de nossa própria imagem no espelho. Segundo a psicanálise, esse é o momento em que se instaura em nós a falta. Onde há falta, há um hiato. Onde há um hiato no sujeito, é onde se aloja o simbólico, ou os significantes (signos) de que nos utilizamos para sermos um sujeito desejante. E onde há desejo, há sonhos, fantasias e recalques, todos os signos que estruturam nosso inconsciente, que nos governa.
Se um sujeito qualquer encaminha seu desejo para um homem ou para uma mulher, isso se deve aos significantes que ele adquiriu em seu crescimento. Daí, ser hétero ou homoerótico seria somente uma relação simbólica. Uma questão de linguagem, praticamente.
Freud, inclusive, apontou para a bissexualidade humana em um de seus livros mais importantes, a saber ‘Os três ensaios sobre a sexualidade’, de 1905. Data do mesmo ano a publicação de ‘O caso Dora’ e ‘O chiste’. Diz Freud: “Algo no indivíduo vai ao encontro (da inversão). Certo grau de hermafroditismo anatômico constitui a norma. Em nenhum indivíduo masculino ou feminino de conformação normal faltam vestígios do sexo oposto. (...) A concepção resultante desses fatos anatômicos conhecidos de longa data é a de uma predisposição originariamente bissexual que, no curso do desenvolvimento, vai-se transformando em monossexualidade”.
Ou não, como diria a lenda sobre o mesmo Caetano.
A questão é que, em termos de desejo, somos todos estrangeiros. Não conhecemos as razões do nosso desejo. Isso só seria possível se parássemos e, como numa análise, tentássemos descobrir as nossas associações livres, os chistes (brincadeiras, voluntárias ou não) e os atos falhos que cometemos, e tudo o mais que estrutura o nosso inconsciente.
Atirar uma pedra na vidraça desejante do vizinho é dar um tiro no próprio pé: como temos problemas com o próprio desejo, tratamos de cuidar da grama do vizinho. Como a Líbia é a 2ª maior produtora de petróleo do mundo, vamos aproveitar o sofrimento e a tardia revolta do seu povo para atacar o país. Foi assim no Iraque.
O sofrimento humano é individual e coletivo. Saúde mental é questão de saúde pública, assim como segurança, educação pública, moralidade política e o grau de cidadania. Mas estar em paz com o seu desejo (inclusive o perverso) é tarefa individual. Se cada um cuidar do próprio nariz, quem sabe o mundo não terá um pouco mais de paz?

terça-feira, 15 de março de 2011

Dormir e acordar


Adriana B. Leite e Santos


"Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda". A frase é de Carl Jung, psicanalista que foi discípulo de Sigmund Freud e que, depois de uma estreita colaboração com o pai da psicanálise, virou dissidente do movimento psicanalítico por não concordar com algumas de suas premissas mais caras. Nem por isso Jung deixou de ter grande importância para Freud e para o desenvolvimento do novo saber sobre a mente humana instituído há pouco mais de 100 anos pelo vienense.
"Quem olha para fora, sonha". Quem olha para o mundo, olhou antes para um espelho. Se viu com o olhar desse mesmo mundo. Esse olhar introduz o aprendizado da utilização de signos e símbolos produzidos em sociedade. A partir daí, o sujeito tenta codificar e decodificar as mensagens que o mundo e o inconsciente enviam, incessantemente. Codificar e decodificar mensagens incluem aprendizados prévios e expectativas futuras. Implicam, portanto, em projeções. Em sonhos. Ou, em linguagem psicanalítica, em fantasias.
Ao olhar para fora, o homem seleciona as imagens que lhe são mais caras. Ao olhar para fora do seu umbigo, o bebê humano necessariamente vê ali o olhar do outro. A exterioridade constitui a nossa subjetividade a partir do momento em que introduz um outro olhar - o olhar do outro - sobre nós mesmos. Ela introduz a intermediação cultural em nossas relações com nossa própria subjetividade.Como afirma Jacques Lacan no texto 'O Estádio do Espelho' , 'a imagem especular precipita a matriz simbólica do eu'. Ou seja, 'o estádio do espelho inaugura a dialética que desde então liga o 'eu' a situações socialmente elaboradas'.
Os processos da comunicação e de interação social não são importantes apenas para a criação de leis e de mensagens que regulam a civilização e o convívio social. Antes, eles são decisivos para o surgimento da própria linguagem no bicho humano, que, à medida que adquire os seus signos - por escolha voluntária ou involuntária - vai estruturando o seu próprio 'eu'.
Tanto a Comunicação Social quanto a Psicanálise têm no sujeito e na interação social seus veículos privilegiados para a transmissão da oralidade (notícias) e do saber (subjetividade) que deles provêm. Em comunicação social, tal processo é conhecido pelo nome de 'feedback', ou retroalimentação.
Por isso, Jung pôde dizer que, no outro lado da moeda, "quem olha para dentro, acorda". Olhar para dentro é abrir as cortinas que escondem os desejos mais obscuros e revelá-los para si mesmo. Quem olha para dentro, acorda porque pode enxergar a falta estruturante do sujeito, suas fantasias e o hiato no qual cabem todos os sonhos e todas as tentativas.
Faz-se isso através de transferência, todo o tempo. E todas as nossas transferências derivam de algo da ordem da complementação da falta que nos estrutura. O grande lance da psicanálise foi exatamente descobrir, como apontou Lacan, que 'sexo' deriva do mesmo radical grego da palavra 'secção', que significa 'corte'. Vários autores apontam para isso, de Platão em 'O banquete', a Caetano Veloso na letra de 'O estrangeiro' e o próprio Lacan, no 'Seminário 8'.
A transferência, chamada pela psicanálise de amor de transferência, é a ilusão de uma completude possível. Por isso, a análise caminha no sentido inverso da relação amorosa: por dizer exatamente que somos um sujeito barrado pela falta. E onde há falta, tudo cabe.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A educação que faz gostar de aprender

Cecília acabou de entrar no 6º ano de escolaridade, antiga 5ª série. Estuda em uma boa escola particular da cidade, que recentemente teve vários de seus ex-alunos entre os primeiros colocados nos vestibulares das principais universidades federais do país. Tem, a partir deste ano, um professor para cada matéria, e está empolgada – assim como toda a turma – com o seu professor de História.

Não o conheço e nunca assisti a uma de suas aulas, mas, pelo que se sabe, professor bom é aquele que tem domínio sobre o assunto, estuda constantemente e tem carisma para lidar com o aluno, além de ter o dom da comunicação e gostar do que faz. É o que dizem também os ensinamentos de Buda: para ensinar uma atitude qualquer, só mesmo tendo essa atitude. Ajudar a alguém a fazer qualquer coisa, até mesmo a aprender, é também aprender a falar a língua do outro. Somente desta forma é que a comunicação se torna possível.

Estou lendo um livro chamado “A eternidade e o desejo”, escrito pela portuguesa Inês Pedrosa e lançado oficialmente no Brasil durante a Festa Literária Internacional de Paraty de 2008. Ainda me encontro no primeiro capítulo, e já na primeira página uma frase me pegou de jeito. Diz a autora: “O que se vê nunca se pode narrar com rigor. As palavras são caleidoscópios onde as coisas se transformam noutras coisas. As palavras não têm cor – por isso permanecem quando as cores desmaiam. Percebo o teu aturdimento: como se traduz a visão: Como se emprestam os olhos?”.

Por isso, a dificuldade maior é ajudar as pessoas que são mais diferentes de nós mesmos. Professores de classe média andam sofrendo o diabo para lecionar em escolas da periferia. Professores quaisquer andam penando para lecionar em qualquer escola pública: os alunos, geralmente desfavorecidos socialmente, têm o discurso do consumismo e da celebridade aprendido nos canais de televisão aberto, enquanto os professores, não muito distantes da mesma realidade, se esforçam para obter mais uma matrícula ou para se aperfeiçoar e subir mais um degrau na escala da titulação, de forma a conseguir novo ou melhor emprego que pague um pouco mais.

E como continuação deles mesmos, já que o futuro pertence à juventude, a maior parte dos professores – assim como os pais – prefere, como disse esta semana na Folha de S. Paulo o colunista Contardo Calligaris, emburrecer os alunos a aborrecê-los. Ensinar a pensar por si só e a gostar de qualquer coisa dá muito mais trabalho do que simplesmente despejar um conteúdo sem ânimo ou sem amor pelo que se faz. Pena que esta última atitude não dá nenhum resultado. Mais: revela a falência da própria vida de quem a adotou, por incompetência ou por inapetência.

Me encanta que ainda existam professores que consigam despertar alegria e entusiasmo em alunos. Me encanta que ainda exista quem deseje ser professor. Que ajuda mais importante se pode dar a alguém do que ajudar a pessoa a se ajudar? Que ajuda mais importante se pode dar a uma criança ou a um jovem do que o despertar do gosto pela grande aventura do conhecimento?

Ajudar cada ser de acordo com a sua própria capacidade é cultivar em si mesmo o amor e a compaixão. É uma escolha consciente ou inconsciente, mas sempre trabalhosa, como tudo o que requer bom tempero e certo tempo de preparo. Se todos os fenômenos que percebemos com qualquer um dos nossos cinco sentidos estão sujeitos a causas e a condições distintas, conhecimento e educação são os únicos a que essa máxima não se aplica. O que se aprende e se apreende são conquistas para toda a vida.

O que transforma as diferentes visões de mundo em algo mais do que meras ilusões não é o dinheiro ou o poder político: é a atitude do observador.